João Grinspum Ferraz
Não são poucas as vezes em que se vê um restaurante gastronómico anunciar seu “novo menu”. Baseados na experiência do “menu degustação” – “menu experiência”, “menu confiança”, “omakase”, ou seja lá qual for o nome adotado -, cujo modelo se afirmou como modus operandi da experiência gastronómica de vanguarda por excelência. É através destes menus extensos, compostos pelos chefs e equipas criativas dos restaurantes, que se tem acesso àquilo que poderíamos chamar de uma experiência “estética-gustativa” em um restaurante que se propõe ser um espaço de vanguarda ou um espaço de luxo. Evidentemente não faltariam argumentos contrários a essa ideia em uma hipotética conversa sobre a alta gastronomia de vanguarda. Mas isso, por ora, não vem ao caso.
É interessante, entretanto, notar que o trabalho criativo de um restaurante pode se estender pelos diferentes processos e etapas necessárias para a formulação de uma experiência. Embora seja esperado que os cozinheiros e restaurantes preocupem-se com todas as etapas que vão da plantação, recolha e origem dos alimentos até a apreciação do comensal, é certo que determinados lugares que se dedicam à vanguarda concentram-se mais em algumas etapas do que em outras – centrando o discurso culinário em certos aspectos da formulação do prato.
Para entender isso, é importante notar que o sucesso de restaurantes como o elBulli e o The Fat Duck, por exemplo, conduziu a cozinha de vanguarda a um aparente esgotamento formal: a chamada “cozinha molecular”, moldada por Ferran Adrià e por Heston Blumenthal foi exaustivamente repetida por cozinheiros mundo fora, sendo em parte significativa das vezes esvaziada de seu sentido semântico. Repetia-se apenas um conjunto de soluções técnicas nas maneiras de preparar o alimento e a experiência do comensal sem, no entanto, alicerçar o uso desses recursos na pesquisa, história e experiência dos cozinheiros daquela cozinha, levando assim a um esgotamento da forma.
Os efeitos desse esgotamento logo foram sentidos. Em toda a parte apareceram restaurantes de alta cozinha propondo esferificações, espumas, preparações usando nitrogénio líquido, bolos cuja massa era feita com sifão, frutas infusionadas a vácuo, dentre outros recursos técnicos que eram repetidos com maior ou menor talento ou sentido. Na maioria das vezes, no entanto, estes pareciam ser apenas parte de uma espécie de protocolo formal que o restaurante deveria cumprir para galgar respeito como detentor do rótulo de “restaurante de vanguarda”. Até aí nenhum problema. Foi o próprio Adrià que tornou lendárias suas apresentações em congressos gastronómicos como o Madrid Fusión apresentando novas receitas e, com elas, novos recursos técnicos para a cozinha – ou seja, Adrià sempre deixou o código aberto para que os demais cozinheiros se apropriassem desse instrumental técnico.
O problema central reside no processo comum por que passam os surgimentos de novas tendências estilísticas nas mais diversas áreas. Primeiro surgem apoiadas em inovações técnicas, discursivas e estilísticas (poderíamos lembrar do advento da “perspectiva” ou do “chiaroscuro” para a pintura do Renascimento e, depois, para o Barroco). Depois, pelas mãos de no máximo um punhado de criadores geniais se expandem como vanguarda e se convertem em tendência. Torna-se então usual sua repetição por jovens criadores à procura de novas maneiras de se expressar. Por fim, com a repetição extensiva e a apropriação coletiva, torna-se apenas maneirismo, e perde sua força inicial, acabando por se converter em apenas uma ferramenta a mais, colocada em uma enorme caixa ferramental e à disposição da humanidade em suas próximas aventuras criativas que devem, via de regra, superar a anterior – já enfraquecida – com o vigor e a força de sua juventude.

É certo, entretanto, que mesmo quando essas repetições formais cessam, e os novos movimentos parecem se afastar mais e mais daquilo que parecia identidade fundamental do movimento anterior – ou seja, quando cessam as repetições desmedidas dessas soluções técnicas que em muitos casos se tornaram apenas bengalas criativas – certas inovações permanecem. Estas são, via de regra, as inovações menos perceptíveis ao comensal médio: são aquelas que concernem aos princípios filosóficos e ao savoir faire, agregados como linguagem ao ethos da criação culinária. Pode-se tomar como exemplo – mais ou menos feliz – a figura da Pietá nas artes plásticas: embora uma inovação criativa da arte Gótica (a Pietá surge como imagem em algum momento do século XIV no interior da Alemanha, fruto de uma nova maneira de interpretar visualmente o texto sagrado), ela permanece como um dos grandes temas da criação artística ocidental pelos próximos três séculos, sendo tomada como tema de grandes obras do Renascimento e do Barroco. Ou, para ficar no campo da gastronomia, o advento do empratamento pela nouvelle cuisine como recurso criativo. Empratar passou a fazer parte do ethos do cozinheiro criativo, sem que esse gesto seja necessariamente associado e visto como repetição da nouvelle cuisine. Nesse mesmo sentido, o elBulli aportou a ideia de menus degustação mais longos e com pequenas porções – muitas vezes apenas “one bite” (uma mordida) – que permaneceriam como maneira de fazer nas mais diferentes tendências surgidas após o declínio da “cozinha molecular” enquanto modismo predominante na cena da gastronomia.
É certo que hoje esses menus excessivamente extensos – muitas vezes chegando à volta de até 50 etapas – passam por uma revisão, sendo muitas vezes reduzidos de maneira drástica. Enquanto hoje uma parte considerável dos restaurantes trabalha com menus que têm por volta de 10 etapas – alguns chegando na casa das duas dezenas –, já existem iniciativas que questionam o menu-degustação como forma essencial, e em diversos lugares já existem restaurantes na ponta de lança da gastronomia contemporânea que experimentam a possibilidade de que o comensal monte ele mesmo sua seleção de pratos, que podem ser individuais ou divididos pelos ocupantes das mesas. Entre as críticas daqueles que defendem o abandono do menu-degustação, há os que a consideram excessivamente impositivo, além do fato de que uma refeição poderia ser menos extensa e mais descontraída. É certo, todavia, que ainda é comum cozinheiros entenderem como sua “obra” não apenas os pratos singularmente, mas a experiência de um comensal desde o momento em que é recebido no restaurante até à hora em que deixa o local. Nesse sentido, os cozinheiros ainda preferem, em sua maioria, atuar mais como diretores de um filme do que como criadores de contos isolados em páginas de um jornal.
Nota: Este é o primeiro de quatro textos sobre o tema a publicar pelo autor
João Grinspum Ferraz é Doutor em História e mestre em Ciências Políticas. Actua como pesquisador e professor, com foco em História da Cultura. Trabalha em projectos sobre a cultura brasileira desde 2005, em 2008 foi curador do Museu do Pão de Ilópolis (RS) e em 2012 foi co-curador da exposição “Histoires de Voir, Show and Tell” na Fondation Cartier pour l’art Contemporain, em Paris. Desde 2014 dedica-se também à pesquisa na área de cultura e alimentação. Criou e dirigiu o documentário “Behind the Plate” (“A Terra e o Prato”).
O conceito de restaurante foi breve na história e está para acabar. A vanguarda actualmente come com as mãos em frente ao computador e com comida comprada directamente à indústria. O acto social de cozinhar em vez de generalizar-se restringe-se. A panóplia de técnicas que no geral todos utilizamos para comer diminui. A quantidade de famílias onde nenhum dos membros cozinha aumenta. A Huber eats e outras no plano da alimentação são a vanguarda, atacando desde logo noções mais tradicionalistas que se tem de comer à mesa a horas e bem num restaurante ou em casa. Nada disso, a vanguarda começa logo por destruir o restaurante e a mesa de jantar em casa, os pratos e os talheres, propõem que comas quando tens fome e não a horas mais ou menos fixas e que não tenhas nenhum tipo de responsabilidade sobre o que comes a não ser pedir como os bebés. Isto sim é bastante vanguardista e uma proposta radical e destinta da cultura alimentar dos últimos 300 anos. Já agora e como regra 3 quase sempre certa, onde há luxo não há vanguarda e onde há vanguarda não há luxo, seja isto na arte na comida etc. Outra regra de 3 é que o luxo é agradável e normalmente a vanguarda penosa e desagradável.
Gostei do artigo, apesar de ter achado a análise superficial. Aguardo desenvolvimentos futuros com interesse.
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