Beber Notas

Eis o novo Barca Velha 2015: “mais magro”, de “taninos firmes”, reúne o melhor dos dois anteriores 

Cada apresentação de um novo Barca Velha é um acontecimento, um momento único, especial, ou não estivéssemos perante a mais mítico dos vinhos de topo portugueses. Já se sabia o ano da colheita, 2015, e esta semana foi altura de dar a conhecê-lo a um grupo que incluiu imprensa, profissionais dos vinhos e clientes do restrito clube 1500 da Sogrape, divididos por duas noites . 

Não há outro lançamento no mercado que crie tanta expectativa, algo que vai muito além do mundo de profissionais e enófilos. Tal deve-se ao historial, à qualidade, raridade e, também, ao preço, qualidades  que dão ao Barca Velha um carácter de exclusividade que, com a paixão e discussão que sempre gera, faz dele uma instituição, desde há décadas. A ajudar ao mito é preciso ver que esta é apenas a 21ª edição de uma referência nascida da visão do enólogo Fernando Nicolau de Almeida, nos anos de 1940, e que se concretizou pela primeira vez, em 1952, numa época em que a qualidade associada aos vinhos do Douro estava 100% virada para um fortificado que nem levava (nem ainda hoje leva) o nome da região, nem, aliás, o da cidade (Gaia) que o acolhe, o Vinho do Porto. 

Como é sabido, este rótulo só vê a luz do dia em anos de excelência – normalmente oito a dez após a colheita – e após provas necessárias até a equipa de enologia estar certa de que tem as características perfeitas, nomeadamente em termos de longevidade, para ser classificado como Barca Velha. Desde há quase duas décadas (mais precisamente, desde 2017) essa é uma decisão que cabe ao líder de enologia Luís Sottomayor, sendo feita, como faz sempre questão de dizer, por razões puramente enológicas e sem interferências comerciais.  

Um lançamento como este é sempre assinalado como um momento especial e também neste campo a Sogrape não brinca em serviço. Deste modo, organizou um jantar em dois dias diferentes, no Paço Ducal de Vila Viçosa (que recebeu pela primeira vez um evento do género), preparado por João Rodrigues e servido na sala da incrível cozinha do paço, rodeada de tachos, formas e outros utensílios de cozinha em cobre. Para o efeito, o mais vitorioso dos chefes vencedores dos Prémios Mesa Marcada criou um menu de propósito baseado em ementas servidas, no passado, neste lugar, respeitando a matriz francesa das propostas, mas com uma interpretação sua e contemporânea. 

Com todas as contingências técnicas do local, nomeadamente com uma cozinha distante, o chef do Canalha optou, e bem, por uma série de pratos frios de forma que os quentes, os dois principais, pudessem chegar nas melhores condições e sem grandes demoras. Claro, no caso, cabia à comida o papel de harmonizar com os vinhos, ao contrário do que é habitual, o que não significa que não tenham brilhado. Brilharam. Aliás, não seria de esperar outra coisa, vindo de João Rodrigues, um dos nossos melhores cozinheiros e chef com uma enorme capacidade de se adaptar às circunstâncias sempre com um nível elevado. Uma prova disso foi o caso da perdiz vermelha com molho Périgord, servida com o Barca Velha 2015. Com tantos narizes, egos e palatos diferentes focados em apreciar as características do grande vinho da noite e em encontrar os superlativos para o descrever, foi interessante ouvir, nesse e no dia seguinte, os elogios ao prato. “Que grande perdiz, estava fabulosa!”, ouvi, por exemplo, de Manuel Carvalho, critico de vinhos e o ex-director jornal Público.

E que tal falar agora do vinho? 

Calma, já lá vamos. Já toda a gente estava bem animada, depois de um início, na varanda, com os snacks e um Comtes de Champagne Blanc de Blancs 2013 (o topo de gama da Taittinger,  distribuído em Portugal pela Sogrape), e, já na sala, com o Série Impar Curtimenta Branco (meio fora da caixa) a acompanhar o lavagante azul, espargos verdes e molho mousseline, a Truta salmonada e consommé à la reine, e ainda a galantina de galinha e foie gras. Também houve um pas de deux ousado entre o pregado, caviar Imperial e nage de crustáceos com um belo Quinta da Leda tinto 1999 até que chegou o rei. 

Isso mesmo, todos esperavam a hora da verdade, o momento de provar finalmente o vinho que nos levou ali.  Curiosamente, o Barca Velha chegou sem grande pompa, não se notando aquele silêncio referencial em que se ouve o líquido a passar pelo gargalo e a cair copo, como vi e ouviu em apresentações anteriores. Porém, esta dessacralização e a descontração predominante – mais própria dos tempos actuais – não prejudicou em nada o foco na apreciação do vinho. Momentos depois, em jeito de coreografia: narizes no copo, umas boas reviradas no mesmo e apreciação na boca, com direito a “goela abaixo”, que não era dia (nem vinho) para cuspir, estava meio mundo empenhado a tirar notas ou simplesmente a trocar impressões.

Sem rede, dois escanções, falam sobre o Barca Velha 2015

Quis o destino que ficasse numa ponta das mesas, entre os escanções Filipe Wang (FW), ex- Kabuki Lisboa, futuro do Jncquoi House e vencedor do Prémio Especial S. Pellegrino/Acqua Panna 2022, dos Prémios Mesa Marcada e Gonçalo Patraquim (GP), ex-Alma, actual Director de Vinhos do grupo Plateform, de Rui Sanches, e vencedor há dias do prémio “Sommelier” da Academia Internacional de Gastronomia, pelo que lhes lancei o desafio de serem eles a descrever o vinho, para este artigo, assim, sem rede, sem filtros, à medida que o iam provando. Apanhados pela surpresa do pedido, um e outro retribuíram-me com um sorriso de ligeiro desconforto, mas não fugiram ao repto. Primeiro com algumas cautelas, mas logo mais libertos, começaram… 

FW: há aqui uma combinação de barrica nova, que traz um lado mais doce que… (pausa), de vez em quando, parece volátil, por exemplo, a dos Riojas. Há Riojas muito limpinhos, mas depois, quando abusam na madeira, tem este lado adocicado do côco, que me faz lembrar um bocadinho o volátil, mas é discreto, muito discreto.

GP: o vinho é incrivelmente concentrado de aromas. É tudo muito é tudo grande (sim, confirmava o Wang). Os aromas mais distintivos são de fruta concentrada, licorice (alcaçuz), desta barriga nova e também a tinta-da-china, de que falávamos há instantes. Mas depois vai abrindo, está a abrir para esteva, para um lado mais verde.

FW: “Savoury”, interrompeu Wang. “O primeiro impacto que eu tenho é da barrica. Temos aqui muitas especiarias”. 

Questiono-os sobre os taninos…

GP: Ainda não provei o vinho 

FW: Também não, mas (pelo aroma) podemos concluir que vai ser um vinho com taninos bem presentes. 

GP: O vinho em boca – leva o copo à boca, “mastiga-o”… há claramente duas características se destacam: tanino e acidez. É um vinho que tem menos corpo do que pensava. 

FW: sim. 

GP: mais magro de boca…

FW: Mais magro, mais fresco… 

GP: mais magro de boca, mas com uma acidez fantástica e um tanino muito bom, alto, mas muito bom. É super juicy, super polimerizado, é muito bom mesmo. 

FW: é o que os ingleses old school chamam de fine grain tanins

DP: O álcool, nota-se no final de prova, perfeitamente normal, mas falta um bocadinho de corpo para suportar esse álcool, na minha modesta opinião. O vinho é muito longo, tem uma persistência muito grande – estou com o vinho na boca aí há um minuto. 

FW: (com algum cuidado…) a ideia que eu tenho é que eles estão a mudar um bocadinho a direcção do vinho…

DP: achas? 

Uma interrupção para quem fez o vinho o explicar 

Nesse momento fomos interrompidos por Luís Sottomayor (na imagem acima) que pedia a palavra para apresentar, então ele, o Barca Velha 2015. Sottomayor falou várias vezes de uma “natureza prodigiosa” que “compõe tudo”, mesmo em épocas como 2015, um ano desafiante mas que, nas suas palavras, acabou por juntar “o bom de um ano quente, com o bom de um ano frio”, características que permitiram ter uvas com “uma maturação completa que terminasse com elegância, harmonia, mas ao mesmo tempo com grande estrutura, com grande volume, com taninos firmes, bem presentes, para permitir fazer um vinho como este”. 

Já antevendo um dos campeonatos preferidos destas apresentações, a comparação com edições anteriores, o coordenador da equipa de enologia da Casa Ferreirinha antecipou-se e revelou: “eu tenho a facilidade de saber o que temos para trás, o que temos para a frente, conseguir situar e perceber a qualidade e as características deste 2015. E se eu olhar para trás consigo perceber que temos aqui uma parte dos dois Barca Velhas anteriores. Conseguimos ter a  estrutura, o volume, os taninos, a maturação, os aromas maduros do 2011 – que foi um ano quente – bem casados com os aromas do 2008, onde sobressaia a elegância, a harmonia, a acidez, um vinho com uma complexidade, mas com austeridade muito forte. E este vinho consegue conciliar um bocadinho aquilo que são as características principais dos seus dois irmãos mais velhos”.

Houve ainda o discurso de Fernando da Cunha Guedes, presidente da Sogrape, que agradeceu aos presentes e à sua equipa e dedicou o memento ao pai e ao irmão, Fernando e Salvador Guedes, presidentes anteriores e figuras muito importantes no desenvolvimento da empresa (ambos já falecidos em 2018 e 2022); os inevitáveis portos da casa e a aguardente da casa sempre presente nestes grandes momentos. 

o presidente da Sogrape, Fernando da Cunha Guedes, ladeado pelo Chef João Rodrigues e Luís Sottomayor

No fim, já não houve oportunidade para pedir ao Filipe Wang, que explicasse a sua percepção sobre a mudança da direcção do vinho, algo que viria a fazê-lo, no entanto, e posteriormente, por mensagem: 

“Sim, sinto que os vinhos são menos extraídos hoje, portanto mais magros. Curiosamente, bebi um Barca Velha 1991 na noite anterior e o vinho pareceu-me muito mais denso. Wang, quis ser ainda mais preciso na sua explicação e clarificar a questão de o vinho ser “mais magro”, uma vez que é uma característica que normalmente a maior parte dos críticos não associa aos Barca Velhas. “Apesar de ser um vinho mais magro, acho que continua a demonstrar toda a essência de um tinto do Douro”, começou por explicar. “Os aromas característicos, a fruta preta e o lado floral não enganam. Taninos generosos (quando o vinho é magro, sobressai mais os taninos), mas de alta qualidade e finura”. 

Para os adeptos dos números

Como referi no início, o Barca Velha 2015 foi precedido de 20 edições – 1952, 1953, 1954, 1955, 1957, 1964, 1965, 1966, 1978, 1981, 1982, 1983, 1985, 1991, 1995, 1999, 2000, 2004, 2008, 2011 – tendo da actual sido engarrafadas 16 567 garrafas, cerca de metade das 33 716 do 2011. Quanto a preços, embora a Sogrape não comunique o PVP recomendado refere que uma quantidade muito reduzida pode ser adquirida nas Caves Ferreira por 860€/gfa, iva incluído. 

Desta vez, não houve Rei Leão, mas temos um Barca Velha “mais magro” e de taninos firmes de grande qualidade, que nas palavras do seu autor, reúne o melhor dos dois anteriores. 

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