Beber

Barca-Velha 2011 ou Rei Leão?

por Miguel Pires, em 12.09.20

Já se conhecia o ano de colheita do mais recente Barca-Velha e até já tinha havido uma data para o lançamento (Maio), que a covid-19 acabou por chutar para estes dias, ainda que o vinho só esteja disponível ao público, em Outubro. Porém, faltava conhecer os detalhes, ouvir as palavras de quem o produz, ver a garrafa, e, mais importante do que tudo, prová-lo. 

Cada lançamento é um momento especial e a equipa da Sogrape é mestre em criar a encenação perfeita. E ontem não foi excepção, ao organizar uma apresentação condizente com o momento no cenário idílico, mas inóspito (antes de ser transformado) da Quinta da Leda, berço do Barca-Velha (BV). É importante recordar que o BV é o mais mítico dos vinhos portugueses e um dos grandes do mundo. A sua história remete-nos para a década de 1940, altura em que o enólogo da Ferreirinha Fernando Nicolau de Almeida teve a ideia e fazer um vinho tinto do Douro assente na mesma filosofia de qualidade e de guarda dos Portos Vintage.

Esta ousadia foi pioneira e o resto bom, o “resto” ajudou a criar e a perpetuar o mito. Tal como nos anos de Porto Vintage clássico, só há Barca-Velha em anos de excelência. O primeiro saiu em 1952 e nos cerca de 60 anos decorridos até este 2011 só em 20 saiu este tinto de topo.  

Como costuma reforçar em cada apresentação o enólogo da casa Luis Sottomayor, que desde 2007 lidera a equipa de enologia da Casa Ferreirinha, a deliberação de existir ou não Barca-Velha é uma “decisão puramente enológica, cem por cento alheia a pressas ou pressões”. 

Só para dar uma noção do que isto pode significar, quando o vinho provado diversas vezes ao longo dos anos mostra uma enorme qualidade, mas ainda assim não reúne todos os critérios necessários para chegar a BV, vira geralmente Reserva Especial, o que em termos de preço significa um 1/3 do valor. Por exemplo, neste momento, na Garrafeira Nacional o custo de um Barca-Velha 2008 é de 685 euros, enquanto que um Reserva Especial 2009 vale 219 euros. Se aplicarmos este diferencial às 33 716 garrafas produzidas do novo BV 2011, há um valor de mercado (não confundir com facturação ou lucro da empresa) de cerca de 16 milhões de euros que se ganha ou perde consoante a decisão é declarar Barca-Velha ou “desclassificá-lo” para Reserva Especial. Portanto, não é bem peanuts…  

Quinta da Leda, no Douro Superior, é de algumas das suas melhores parcelas que saem as uvas que vão compor a maior parte do lote dos vinhos destinados a Barca-Velha

Todavia, ao contrário do 2008, em que a decisão não foi de caras, o 2011 já nasceu Barca Velha, segundo revelou Sottomayor, ontem, na apresentação. “Foi uma decisão fácil. Este vinho nasceu um Barca-Velha”. O que o fez ter tantas certezas logo de início teve a ver com a “quantidade razoável” e “qualidade excepcional” das uvas que saíram da vindima desse ano. “Tínhamos 14 ou 16 lotes para fazer BV. Foi só alinhar e fazer os lotes”. E à pergunta se gostava mais deste ou do 2008, sem querer desvalorizar o filho anterior, o enólogo respondeu: “este é um clássico”.  O falatório e as comparações (e uma certa especulação) fazem parte do jogo e as velhas raposas do vinho adoram essas disputas. Adivinhando tal sururu, Luís Sottomayor apressou-se a responder à questão 2008 vs. 2011, dizendo que o novo “não é o oposto do 2008 que era de um ano frio. Este é de um ano quente e afirma-se quando chega”. E quando foi para escolher algo que o simbolizasse, o enólogo não esteve com meias medidas: “como um leão, nobre e valente, é um vinho cheio de garra, que se doma a si próprio. Reflete na perfeição o terroir do Douro Superior e uma notável maturidade só ao alcance de alguns vinhos”. E remata dentro do mesmo tom: “nunca provei um vinho com esta textura na boca. Mas tem uma elegância extraordinária”.

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Luis Sottomayor, líder a equipa de enologia da Casa Ferreirinha 

Certamente que alguns leitores devem estar a pensar que o homem tem de vender o seu pão e que à hora a que foram proferidas aquelas palavras já se tinham bebido uns bons copos. Sim, também é verdade, mas embora a cordialidade e educação sejam uma característica sua, já ouvi declarações de Sottomayor de um franqueza desarmante, ao ponto de criar alguma apreensão à equipa de comunicação.

E o vinho é mesmo isso tudo?

Não consigo chegar a toda aquela poesia etérea (e muitas vezes etílica) do contra-rótulo ou de certas notas de prova. Porém, não há hipótese: é de facto um vinho incrível. Um perfil clássico do Douro, sim – especiado, com frutos vermelhos, notas balsâmicas -, com estrutura, garra, uma acidez vibrante, mas ao mesmo tempo uma finesse que o torna diferente de todos os outros topos de gama da região (alguns dos quais ainda hoje umas verdadeiras bombas que me deixam sem vontade de continuar a beber a partir do segundo copo). De facto, não conheço nenhum outro vinho com cerca de dez anos que tenha a juventude e a frescura que tem este Barca-Velha 2011 (e com 14.5% de álcool!). E tão bem acompanhou o óptimo cabrito assado no forno a lenha com batata assada feito pelas cozinheiras da quinta, Nela e Angelina.

No final alguém me perguntava como é que alguém dos vinhos naturais via este vinho. Acho que não cheguei a responder, mas diria agora que… assim, como o descrevi acima. Só não lhe chamo Rei Leão, porque sou do Benfica. 😉

P.S. para quem gosta de datas eis as de todas as colheitas de Barca-Velha lançados até hoje: 1952, 1953, 1954, 1955, 1957, 1964, 1965, 1966, 1978, 1981, 1982, 1983, 1985, 1991, 1995, 1999, 2000, 2004, 2008 e 2011. 

Fotos: D.R.

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