Restaurantes

Um restaurante que brilha na Herdade da Malhadinha Nova  

Tinha estado pela última vez na Herdade da Malhadinha Nova há para aí 20 anos, quando então a família Soares, sua proprietária, indicava nos campos, pontuados por edifícios em mau estado, o que projectava fazer. Por razões diversas, entre as quais o ter deixado de acompanhar o sector dos vinhos – o que na época também fazia para o Diário de Notícias – não voltei lá, apesar de algumas oportunidades que não aproveitei devido a desencontros de agenda. Porém, fui tendo notícias do êxito do projecto, já não apenas como produtor de vinhos, com os seus distintos rótulos com desenhos das crianças da família e a enologia de Luís Duarte, mas igualmente com a sua aposta na hotelaria e na restauração, esta entregue há uns 15 anos ao chefe Joachim Koerper (o mesmo do Eleven, em Lisboa, uma estrela Michelin), bem como em outros produtos agrícolas, nomeadamente azeite, cereais e mel, tudo bio. Mais do que um consultor, Koerper é considerado “da casa” pela família Soares, passando frequentemente uma semana por mês na Malhadinha, que tem actualmente António Simões como chefe residente.

Foi precisamente o restaurante da Malhadinha e a estrela verde (atribuída aos que têm boas práticas de sustentabilidade) ganha na última edição do Guia Michelin, que serviu de pretexto para voltar a esta herdade alentejana, que vim encontrar completamente transformada, concretizando belissimamente o que há 20 anos tinha sido projectado. Passei lá duas noites e verifiquei em dois jantares que, além da estrela verde, este restaurante merecia certamente uma outra estrela pelo óptimo nível da cozinha que pratica, contando também com um serviço de sala impecável, boa decoração e um ambiente alegre, dado pelos clientes que enchiam as mesas, na sua grande maioria hospedados na herdade. Pareceu-me claramente uma aposta bem-sucedida, o que nem sempre acontece em unidades de enoturismo, por vezes mais dedicadas a tábuas de queijos e enchidos.

O carabineiro com arroz carolino de manjericão é um prato que vale a viagem à Malhadinha

Integrada na conceituada cadeia Relais & Châteaux, a Herdade da Malhadinha Nova possui uma casa central com dez quartos e depois várias unidades espalhadas pelos campos adjacentes, instaladas em edifícios recuperados, onde são servidos pequenos almoços e refeições a pedido, piscinas, esplanadas, áreas comuns e muitas outras comodidades. Tudo decorado com muito bom gosto e personalidade por Rita Soares, que cuida de cada pormenor, fugindo a “standards” e outros lugares-comuns da hotelaria, mesmo daquela que se julga diferente. Oferece várias actividades, tem spa e possibilidades de experiências e passeios, inclusive a cavalo, já que tem coudelaria própria e picadeiros. E também cria vacas de raça alentejana DOP e excelentes ovelhas merinas DOP – uma delas, preta, ganhou inclusivamente o primeiro prémio na Ovibeja que se realizava enquanto eu estava lá hospedado – que pude apreciar à mesa, como adiante se verá.

Pregado com alho-francês e molho de chalota

Encontrei no restaurante principal – há um outro numa outra unidade, Monte da Peceguina, à beira da piscina, que serve sobretudo refeições mais ligeiras durante o dia – uma cozinha que mostra bem a falta que nos fazem cozinheiros com sólida formação clássica, como Joachim Koerper, que sabe tirar partido como ninguém dos bons produtos que lhe disponibilizam. E nesta herdade eles não faltam, em particular legumes e vegetais, mas também galinhas, ovos ou as já mencionadas carnes de vaca e de borrego. Outros produtos que a herdade não produz, como porco preto, por exemplo, vêm de perto. Ou os peixes e mariscos provenientes do Algarve, onde a família proprietária tem forte presença comercial através da Garrafeira Soares. Nas sobremesas, de destacar o trabalho de Cintia Koerper, casada com Joachim Koerper, que tem Letícia Silva como chefe de pastelaria residente. Na parte dos vinhos, onde sobressai o trabalho do escanção Andrii Pokryshko, um ucraniano há vários anos na casa, além de muitos vinhos produzidos na herdade – Nuno Gonzalez é o enólogo residente – e também numa outra propriedade na Serra de São Mamede (marca Teixinha), há uma outra parte dedicada a vinhos portugueses de nomeada e também a vinhos estrangeiros do melhor que há.

Uma sobremesa de Cintia Koerper que exalta o mel produzido na herdade

No primeiro jantar no restaurante, também aberto ao almoço com o mesmo menu, Joachim e Cintia Koerper estavam presentes e o desfile começou com um couvert que mostrava logo as potencialidades de se ter um restaurante no meio de uma herdade com mais de 600 hectares: telhas de pão alentejano, pão de massa mãe artesanal de produção própria, azeite biológico de azeitona galega da Malhadinha, manteiga dos Açores com flor de sal algarvia de Castro Marim e vinho da Malhadinha, presunto pata negra e queijo Serpa (6€). Veio depois uma entrada de tártaro de atum com citrinos e nêsperas da herdade (23€) – que serão substituídas por figos quando passar a época -ideal para iniciar o repasto, leve, fresco e saboroso.

Ovo biológico em ninho de batata com cogumelos

Passámos então aos pratos principais, com o peixe do dia (era pregado) com alho-francês da horta queimado, cebolinhas em pickle e molho de chalota (35€). Magnífico molho beurre blanc (que me parece estar muito na moda nos restaurantes portugueses e ainda bem), bom ponto de cozedura do peixe, vegetais cheios de sabor a combinar, o que se pode querer mais? Pois eu quero mais, quero o prato seguinte, um inesquecível arroz carolino (Ronaldo, de Alcácer do Sal) de manjericão e amêndoas tostadas, servido sobre tártaro de carabineiro, com o bicho inteiro ao lado, ligeiramente cozinhado, com os seus deliciosos sucos. Um prato que vale a viagem, apesar do preço (55€), tal a riqueza de sabores que apresenta, a felicidade da conjugação dos ingredientes, os pontos perfeitos do marisco e do arroz. Talvez por isso, achei mais “normal”, ainda que mantendo o elevado nível de todo o jantar, a presa de porco preto alentejano DOP, batata confitada, pimentos vermelhos, cenouras glaceadas e pickles (33€), que remetia para a combinação da carne de porco à alentejana, embora também levasse camarão da costa, além das amêijoas.

Tártaro de carne alentejana produzida na propriedade

Duas belíssimas sobremesas encerrariam este lauto jantar, uma de cremoso de chocolate, brownie e coulis de polpa de cacau (15€), com uma suavidade estupenda e sem “pesar” nada, e outra – bavaroise de mel biológico da Malhadinha com cremoso de limão e gelado de mel (15€) – com a característica de ter um ingrediente principal que não me entusiasma, mas que aqui foi tratado superiormente. E como sou glutão e os vinhos da Malhadinha prestam-se a isso, ainda tive a lata de pedir um prato de queijos…

Bacalhau com mexilhões à Bulhão Pato e presunto pata negra

 O segundo jantar foi mais “frugal”. O casal Koerper já tinha voltado para Lisboa, mas nem por isso o nível foi menor do que o da noite anterior. Pedimos entradas diferentes: ninho de batata, ovo biológico a baixa temperatura, cogumelos e emulsão de espinafre da nossa estufa (19€), uma combinação quente e aconchegante, que sai sempre vencedora, inclusive pelas texturas; e um soberbo tártaro de carne alentejana, tutano, batata doce, alcaparras e brioche caseiro (24€), de sabores complexos, resultantes de um equilíbrio perfeito entre os ingredientes. Nos pratos principais, lombo de bacalhau, mexilhão à Bulhão Pato e presunto pata negra DOP
(29€), que também levava as ervilhas de época, cebola roxa e açafrão local, mais um belíssimo exemplo de como se conseguem sabores complexos e diferentes através de uma combinação original de ingredientes. Não me lembro de já ter visto bacalhau de cura portuguesa conjugado com mexilhões ou Bulhão Pato, mas garanto que ficou lindamente. E de novo outro prato inesquecível, desta vez um borrego merino DOP da Malhadinha, com gomo de couve grelhado, xerém, milho queimado e hortelã da ribeira (33 €) – o júri da Ovibeja sabe muito -, tal a qualidade da carne, e que demonstra que vale a pena ter cozinheiros como Koerper e António Simões, exímios em exaltar as suas características. Por fim, só uma sobremesa – e nada de queijos – com uma tarte de maçã excelente (15€), com massa leve a lembrar uma crostata italiana.

O borrego merino DOP da Malhadinha foi mais um prato inesquecível

Nos dois jantares, a sala, que comporta uns 50 clientes, estava cheia, sobretudo no segundo (que decorreu numa quinta-feira), inclusive com mesas a rodar, e era visível a satisfação dos comensais. E há ainda uma esplanada arborizada, que deve ser agradabilíssima em noites quentes. Dá gosto ver um restaurante assim, inserido num projecto com a qualidade e as características da Malhadinha Nova, tanto mais que fica bem longe de centros urbanos. Há quem ache que, com este êxito, uma estrela Michelin, em vez de ajudar, pode afastar clientes, principalmente as famílias, muitas vezes com crianças, que se hospedam na herdade. Pois eu acho que não. Desde que mantenham a mesma cozinha e os mesmos preços, uma estrela não deveria “intimidar” ninguém. Afinal, há centenas de restaurantes estrelados noutros países (só na vizinha Espanha são 224, em Itália são 324 e em França são 534…), com cozinhas muito piores do que esta, sem formalismos nem exigências de vestuário, onde até já vi clientes de calções. Que venha então a merecida estrela encarnada para fazer companhia à igualmente merecida estrela verde.

Tarte de maçã

Herdade da Malhadinha Nova


Morada: Herdade da Malhadinha Nova, 7800-601, Albernoa, Beja

Tel. 284 965 432

E-mail: reservas@malhadinhanova.pt

Horários: Aberto de terça-feira a sábado das 12h30 às 15h e das 19h30 às 22h30

Fotografias: Cristina Gomes

Nasceu em Lisboa em 1963. Licenciou-se em Comunicação Social pela Universidade Nova de Lisboa e trabalhou em diversos jornais (Semanário, Diário Popular e Diário de Lisboa) e, depois, na área de comunicação empresarial. Em 1997, começou a colaborar com a revista “Fortuna” na área de gastronomia e vinhos. Em 1999, criou a página “Boa Vida” para o “Diário de Notícias”, que coordenou até Janeiro de 2009, com algumas interrupções. Entre 2007 e 2019, foi coordenador do Projecto Gastronomia da Associação de Turismo de Lisboa e, nesse âmbito, director do festival gastronómico Peixe em Lisboa, continuando a escrever artigos sobre gastronomia e restaurantes em várias publicações.

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