Critica Gastronómica

Novos pratos n’A Cevicheria e no Tapisco

Ficam a poucas dezenas de metros um do outro na Rua Dom Pedro V, na zona do Príncipe Real, em Lisboa, e em comum têm também ser locais informais, dominados por balcões e por cozinhas que pretendem ser mais acessíveis, quer pelo preço quer pelas propostas, e têm enorme êxito, nomeadamente entre os muitos turistas que por ali circulam. E ambos os restaurantes, A Cevicheria e o Tapisco, são orientados por chefes bem conhecidos, respectivamente Kiko Martins e Henrique Sá Pessoa, que são responsáveis por diversos espaços. Porém, entre tantas semelhanças, há uma grande diferença no estilo culinário: enquanto A Cevicheria, que está a completar 10 anos de existência, voa até ao Peru, o Tapisco – mais recente, datando de 2017 – fica-se pelos sabores da nossa Península Ibérica. Por coincidência, nas últimas semanas, ambas as casas apresentaram novos pratos e eu fui lá prová-los.

Começando pela Cevicheria, onde fui convidado para almoçar, fiquei contente por ouvir Kiko Martins – cujos restaurantes (além deste, O Talho, O Boteco, A Dos Manos e O Poke, todos em Lisboa) empregam mais de 150 pessoas – dizer que está numa fase de grande interesse e dedicação à cozinha. E é ele próprio que, nesta fase de novos pratos, está atrás do balcão a controlar a operação e a atender os clientes. Neste pequeno espaço, com esplanada com mesas altas, tudo começa com pisco sour e aqui começam as novidades, já que este tradicional cocktail peruano tem agora duas variantes, com manga picante e com ananás com coentros. Gostei especialmente da primeira, com o picante em dose moderada, ajustando-se lindamente à doçura da fruta tropical.

Kiko Martins está neste momento ao balcão d’A Cevicheria a apresentar as novidades

Kiko Martins disse-me que mexeu em 15 pratos de uma lista variada, mas não demasiado extensa, com pouco mais de 20 opções, incluindo sobremesas. Alguns são totalmente novos, noutros foram introduzidas mudanças, mas todos na linha que A Cevicheria segue há uma década. A primeira novidade foi um cucurucho de barriga de atum (21,60€, 2 unidades), um cone de massa brick, encimado por uma espuma de limão, com recheio do peixe cru, terminando com kizami wasabi. Come-se em três dentadas, a primeira mais fresca, a segunda com maior profundidade de sabor, a terceira com um picante aromático. Nas três dentadas sobressai sempre a textura, com uma massa de um espectacular estaladiço. Há ainda um outro cucurucho na nova carta, de lavagante, maracujá, amendoim e wasabi (23,80€, 2 unidades), que não provei.

Cucuruchos de barriga de atum, espuma de limão e kizami wasabi

Seguiu-se outra novidade, causita de lavagante e gamba do Algarve (14,90€, 4 unidades), com puré de batata enegrecido com tinta de choco, em forma de pastel de bacalhau, encimado pelos mariscos. Gamba quase crua, lavagante mais cozido, estava bom, mas achei que ficaria melhor se a dimensão das causitas (diminutivo das célebres causas, a tais que levam sempre batata) fosse menor, já que assim se impõe em demasia. Num outro clássico peruano, o tiradito (que se assemelha ao conhecido sashimi, parece que por influência da numerosa comunidade de origem japonesa que se fixou no país sul-americano), veio lírio, com framboesa fermentada na casa e rocotto (21,80€), um pimento igualmente típico do Peru. E também uma emulsão com espargos brancos que marcava bastante o prato, assim como o doce do fruto vermelho. “O doce é para diminuir a acidez, muitas vezes tenho que acrescentá-lo”, justificou Kiko Martins, que também explica a ausência dos habituais toques cítricos que se veem em pratos como este ou no anterior, nas causitas com mariscos. Segundo ele, há bastantes clientes, sobretudo aqueles que bebem pisco sour (que leva lima), que se queixam de saírem da Cevicheria com acidez demasiado elevada…

Tiradito de lírio com framboesa fermentada e rocotto

Depois disto, veio ceviche de camarão alistado com puré de batata doce, alga tosaka e tapioca (39,60€). Está na fotografia de abertura deste artigo. Como quase não notei a presença da alga, achei um prato perfeito num equilíbrio entre elementos difícil de conseguir (incluía também cebola roxa), na pouca agressividade ácida do leche de tigre, no ponto de cozedura dos camarões, na combinação de texturas. Grande prato. Serviu-se então a única carne da refeição, um tártaro de wagyu vindo da Austrália (24,60, 2 unidades), que repousava num brioche, acompanhado por aji panca (mais um dos inúmeros pimentos peruanos) e castanha também peruana. À semelhança do que aconteceu nas causitas com o puré de batata e os mariscos, pareceu-me que havia brioche a mais, que de alguma maneira vulgarizava a carne. Mas a combinação entre sabores resultou muito bem.

Tártaro de wagyu sobre brioche com aji panca e castanha peruana

Algumas das minhas melhores lembranças destes 10 anos de Cevicheria prendem-se com quinotos, uma magnifica forma de dar sabor ao cereal quinoa (que não aprecio particularmente), cozendo-o em caldos à maneira de risotos. Nesta renovação da carta, Kiko Martins apresenta um quinoto com salmonete ligeiramente tostado em manteiga, tempura de gamba do Algarve, espuma de ostra e alga tosaka, recorrendo a caldo obtido a partir da cabeça dos camarões (28,70€). Sabores fortes, salgados e apimentados, uma outra alga qualquer a intrometer-se no quinoto propriamente dito (não toquei na tosaka, que parece que é mais decorativa do que outra coisa), acrescentando um desnecessário iodo. Preferia sabores mais suaves, mas enfim, há quem goste. Tanto o salmonete quanto a tempura estavam bem e a espuma de ostra elevava o conjunto.

Quinoto com salmonete e tempura de gamba do Algarve

Depois destes sabores fortes, soube bem a sobremesa, igualmente reformulada, o típico suspiro limeño, que nesta casa lisboeta é descrito como um flan de doce de leite, merengue, suspiro e granizado de lima (8,90€). Tudo bastante doce, mas também com bastante acidez, que encerrou bem esta refeição que mostra um Kiko Martins com ambição, sem vontade de se acomodar ao êxito que foi obtendo e sem medo de arriscar. Que venham novos projectos.

Ao balcão com Henrique Sá Pessoa

Vamos agora andar umas poucas dezenas de metros para nos sentarmos ao balcão do Tapisco. Era um almoço para os meios de informação e o próprio Henrique Sá Pessoa estava lá para explicar as novidades. O chefe divide-se actualmente entre vários restaurantes: o Alma, o seu duas estrelas Michelin lisboeta, o Vinha, em Vila Nova de Gaia (para mim, mas não, infelizmente, para os inspectores do guia, uma casa que já merecia uma estrela há pelo menos um ano) e restaurantes em Macau, Amesterdão, Londres e, mais recentemente, em Miami. Aliás, alguns dos pratos apresentados no Tapisco são também servidos nos restaurantes além-fronteiras.

Devo dizer que o almoço não começou da melhor maneira. Vieram primeiro mexilhões à espanhola (18€), raquíticos e com pouco sabor. No entanto, o molho estava bastante bem, com paprika fumada a lembrar enchidos, que hoje se evitam quando se pode para não desagradar a clientes menos propensos a carnes vermelhas e que são cada vez mais numerosos. Mas pior estava uma versão vegetariana de pica-pau – que parece que faz muito sucesso no restaurante de Amesterdão – em que se recorre a cogumelos, no caso shitakes, pleurotos e Paris (18€). Nem a mostarda Dijon presente no molho, nem as bem-feitas batatas palha e os pickles caseiros salvavam o conjunto.

Bacalhau assado com migas de tomate

Mas a verdade é que partir daí tudo melhorou. E muito. Excelente o bacalhau assado (no Josper), de cura à portuguesa, com migas de tomate (24€), uma emulsão obtida do colagénio do peixe, acompanhado por feijão-verde, um vegetal que tem conquistado a atenção de Sá Pessoa, que o vê frequentemente desprezado e maltratado entre nós. Belo prato, com tudo bem equilibrado e com os elementos trabalhados com apuro. Superlativo, no entanto, estava mesmo o arroz de pato, com linguiça de porco preto e aioli de salsa (28€), um prato que, segundo o chefe, está entre os preferidos do seu restaurante em Miami, mostrando que não são só versões vegetarianas de receitas portuguesas que agradam a paladares internacionais. Em vez de carolino, o arroz usado foi o espanhol bomba, servido num pequeno tacho, que tostou e caramelizou deliciosamente os grãos do fundo, naquilo que é apreciado como socarrat no país vizinho. Quanto ao pato, foi estufado inteiro e depois desfiado. Só o aioli falhou um pouco, já que se poderia sentir mais a salsa.

Arroz de pato com linguiça de porco preto e aioli de salsa

Das novidades não provadas, há ainda caldeirada de garoupa, camarão e coentros (28€) e arroz de marisco com camarão, vieiras e mexilhão (32€). Mas houve espaço para as novas sobremesas: sericaia, ameixa d’Elvas, sorbet de limão e arroz doce, maçã caramelizada, gelado de canela (ambas a 8€). Achei o limão desajustado na primeira e que a ameixa, servida fatiada, perdeu na textura e até no sabor. A segunda sobremesa estava mais feliz, com a maçã a fazer uma intromissão interessante e o gelado a cumprir o seu papel refrescante e aromático.

Aqui ficam então as novidades de dois restaurantes lisboetas onde vale a pena ir, que mostram bem como Kiko Martins e Henrique Sá Pessoa, mesmo com o passar dos anos, continuam a proporcionar óptimas experiências a quem os visita.

A Cevicheria

Morada: Rua Dom Pedro V, 129, Lisboa

Não aceita reservas

Horário: aberto todos os dias das 12h às 23h

Site: https://www.acevicheria.pt/

Tapisco

Morada: Rua Dom Pedro V 81, Lisboa

Reservas: tel.213 420 681

Horários: de terça-feira a sexta-feira, das 12h às 16h00 e das 18h30 às 00h.

Sábado e domingo das 12h às 00h

Site: www.tapisco.pt

Fotografias de A Chevicheria: Cristina Gomes

Nasceu em Lisboa em 1963. Licenciou-se em Comunicação Social pela Universidade Nova de Lisboa e trabalhou em diversos jornais (Semanário, Diário Popular e Diário de Lisboa) e, depois, na área de comunicação empresarial. Em 1997, começou a colaborar com a revista “Fortuna” na área de gastronomia e vinhos. Em 1999, criou a página “Boa Vida” para o “Diário de Notícias”, que coordenou até Janeiro de 2009, com algumas interrupções. Entre 2007 e 2019, foi coordenador do Projecto Gastronomia da Associação de Turismo de Lisboa e, nesse âmbito, director do festival gastronómico Peixe em Lisboa, continuando a escrever artigos sobre gastronomia e restaurantes em várias publicações.

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