Restaurantes

SEM, o novo restaurante que quer redefinir o termo desperdício

Este último ano e meio a pandemia passou como um furacão e bateu forte no sector da restauração. Porém, no meio do abalo, têm-se encontrando exemplos de resiliência, nomeadamente no segmento da restauração mais qualitativa, com novos projectos diferenciadores, como é o caso do restaurante SEM, do casal Lara Espírito Santo e George McLeod, que abre esta terça-feira, dia 29 Junho, em Alfama (Lisboa).

Lara (33 anos) e George (32) conheceram-se em Londres. Ela, brasileira filha de pais portugueses, cresceu em fazendas na América do Sul onde ganhou o gosto pela terra e pela cozinha tendo ido viver para Inglaterra, já na fase adulta, onde fez o mestrado em Desenvolvimento Sustentável na Universidade de Manchester e mais tarde o curso de cozinha na escola Le Cordon Bleu, em Londres. 

Por sua vez, ele nasceu, viveu e formou-se em cozinha na Nova Zelândia, trabalhou ainda em outras áreas e depois de passar por alguns dos melhores restaurantes do seu país, mudou-se para a Austrália e posteriormente para Londres. Desde cedo ambos se mostraram focados nas questões relacionadas com o ambiente, com a sustentabilidade, e uma vez em Inglaterra, tinham como grande objectivo trabalhar com Douglas McMasters, no Silo, o restaurante de Brighton que é a grande referência mundial em termos de “desperdício zero”. Quando McMasters resolveu abrir em Londres, foi ouro sobre azul para o casal. Lara candidatou-se primeiro e participou na preparação da abertura do restaurante, enquanto que a oportunidade para George surgiu à última da hora, no dia D, quando foi desafiado a substituir o sub-chef que teve de abandonar o cargo. 

O Silo da capital inglesa abriu em Novembro de 2019 e o vento corria de feição até que começaram a surgir as notícias vindas da China. O resultado é o que todos sabemos: como tantos outros o restaurante haveria de fechar em Março, quando Inglaterra e uma boa parte do mundo paralisou. Lara e George viviam nessa altura numa cave, na zona Leste de Londres, e perceberam que o lugar não era o mais indicado para passar o confinamento, pelo que tomaram rapidamente a decisão de sair da cidade. Entre os três destinos que colocaram em cima da mesa, Brasil, Nova Zelândia e Portugal, este último, onde Lara tem laços familiares e vinha todos os anos, tornou-se a hipótese mais lógica e exequível, pela proximidade – até porque o mundo começava a fechar-se. “Em quatro dias empacotámos a nossa vida e aterrámos em Lisboa”, conta-nos ela. Porém, ao chegar não ficaram na capital, foram directo do aeroporto para a Comporta, onde um amigo de família lhes tinha emprestado uma casa “das originais, uma cabana de pescadores”. Não eram imigrantes em situação precária, mas também não eram propriamente expatriados londrinos em busca de sol, com tempo e dinheiro de sobra, pelo que arregaçaram as mangas e começaram a mexer-se no sentido de fazer algo no imediato. Iniciaram-se pelo delivery – algo que funcionou bem em lugares com a Comporta – e foram em busca de um espaço que desse para fazer um pop up. Surgiu-lhes a hipótese de ficar com um pequeno bar de praia ao lado do Sal, na praia do Pego. Aí, não se meteram a fazer nada de pretensioso, nem imitar o que já se fazia. Era uma comida de praia, uma espécie de street food na areia. Lara tinha alguma experiência, uma vez que chegou a ter um food truck em Inglaterra – “andei a vender pregos, fiz festivais…” – e ainda que a experiência tenha tido as suas peripécias serviu para rodar e desenvolver contactos exploratórios para virem a ter o seu próprio restaurante onde pudessem fazer a sua cozinha e aplicar os princípios de “lixo zero”, algo muito pouco explorado por cá.  

Encontraram esse lugar em Alfama, na Rua das Escolas Gerais, onde era antes Os Gazeteiros de David Eyguesier. Lara não tem perfil de new ager mas acredita em boas energias. “O David não desejava passar o restaurante a qualquer um e nós também não queríamos ter a sensação de entrar num lugar que estava morrendo, que tivesse má energia”, refere. Coincidência ou não, em Fevereiro, no dia em que fazia 5 anos que David tinha aberto os Gazeteiros, assinaram contrato, acabando também por ficar com um espaço ao lado, que, entretanto, vagara. Depois, foi vez de pôr mãos à obra, literalmente. Com a ajuda de amigos, iniciaram a remodelação do espaço. No restaurante, as alterações foram menores, mais uma lavagem de cara, com pinturas, um retoque aqui, um adereço ali e novas cadeiras – que eram do Attla. Já com a antiga loja, houve maior intervenção dado que o espaço estava completamente descaracterizado. 

No dia que os visitei, uma semana antes da abertura (e na véspera de um primeiro jantar de teste), George McLeod e Miguel Saboya, artesão, terminavam o bar todo feito em madeira de acácia (uma espécie invasiva) só com encaixes (ou seja, sem utilizar pregos ou parafusos). “O chão”, apontava Lara “é de azulejos feitos por uma empresa portuguesa chamada Goma, que utiliza borracha reciclada das solas de sapatos de ténis”. Estes detalhes, discretos, de bom gosto, revelam uma identidade e indícios de um propósito, o redefinir o termo desperdício. 

Porém, o SEM começou ainda antes de intervirem no espaço, com a visita a produtores. “O projecto Matéria foi o ponto de partida. Foi essencial”, revela Lara fazendo questão de referir o apoio que sentiram no meio. “Foi muito incrível a receptividade dos outros restaurantes e chefes”, mencionando entre outros nomes, o de André Fernandes, do Attla, António Galapito, do Prado, ou João Rodrigues, do Feitoria. “Em Londres isto seria impossível!”.

Da pesquisa e visitas que fizeram saíram um pequeno grupo de produtores, ou “parceiros”, como gostam de chamar com que se identificaram, que produzem em modo biológico e que implementam práticas agrícolas regenerativas. A ideia é trabalhar em colaboração estreita com eles, sem intermediários e baseado na confiança e em comunicação aberta. Cada prato é pensado em torno do que os fornecedores têm disponível no momento, seja como excedente ou como colheita planeada, e não o contrário. Eles contam que no SEM querem “dar preferência a produtos subavaliados e subutilizados” e usar tudo. George levanta-se e pega num frasco de pó roxo com um aroma agradável. Foi feito a partir dos caules e das folhas velhas de couve roxa. Num dos frascos, que estão nas prateleiras há tomate fermentado feito com exemplares verdes e fora do padrão, que de outra forma iriam para o lixo. 

Para exemplificar melhor a ideia, o chef neozelandês refere o conceito de “produtos vivos” e “produtos mortos”. No primeiro grupo estão os ingredientes que são trabalhados a partir de alimentos vivos. Por exemplo: “a fermentação e outras técnicas de conservação são aplicadas em peles, cascas, sementes, caules, folhas, ossos, entre outros, para utilização futura”, ou seja, nenhum alimento não cozinhado é descartado. Só quando já não há uma utilização possível é que esses alimentos, agora denominados “mortos” são destinados à compostagem. “A reciclagem é um último recurso e não um condutor”.

  • Batatas, molho de manteiga e miso de ervilha, nabo e sauerkraut de couve roxa
  • Yacon, puré de casca de limão, pickles de couve rabano, queijo de cabra e jasmim
  • Terceiro: tártaro de choco, gema fumada, ameixas e espinafre

Lara e George tem noção que esta filosofia que visa a redução ao máximo do impacto ambiental vai ser recebida por uns com cepticismo e como um posicionamento radical. Todavia, não é nada que lhes vá perturbar o sono. “Sim”, mesmo que se possa trabalhar com produtos animais de uma forma sustentável, “vão apontar o facto de não sermos vegetarianos, por exemplo”, ri-se. Resolvo testá-la apontando para o tecto, onde se vê um velho candeeiro/instalação que já fazia parte do espaço, com vários casquilhos, uns sem lâmpadas, outros com lâmpadas incandescentes, cuja venda é actualmente proibida, por não serem ecológicas. A reposta surge de pronto: “o que é mais sustentável, deitá-las todas fora ou substituí-las apenas à medida que se forem fundindo?”.  

A dupla está ainda ciente que não basta ter um discurso idealista se a comida não for boa e, por isso, querem que o SEM seja um restaurante e bar “que serve comida de impacto positivo e vinhos de intervenção mínima num sistema de economia circular”, mas que tudo isso “será em vão se a experiência dos clientes não for da mais alta qualidade”.

De início, a equipa conta com cinco pessoas, entre a cozinha e a sala – todos estrangeiros com alguma ligação ao país (familiar, namorado/a, estudos, etc). A dupla é responsável pelo processo criativo, porém, no dia a dia, George comandará a cozinha e Lara estará apenas na sala. “Decidimos separar as funções”, explica. “Sendo o nosso filho é muito importante para nós que a experiência comece no momento em que o cliente cruza a porta”. Além disso, refere, “o facto de ter experiência de cozinha e estar na sala é importante para fazer a ponte entre as duas funções”. 

O restaurante irá funcionar apenas com um menu de degustação de 5 pratos (“que na verdade serão 7”) que custarão 45€ + 35€ para quem quiser fazer pairing de vinhos. Já no Bar, serão pratos à carta para partilhar elaborados com os mesmos ingredientes. 

No que diz respeito a horários, de início, ou melhor, quando as restrições forem levantadas, pretendem funcionar de 3f a sábado, das 18h às 22.30, com o bar aberto até mais tarde. Em princípio, aos Sábados também têm previsto abrir esta parte às15h. 

P.S. Cristiano Ronaldo poderá ficar descansado, não haverá Coca-Cola. Mas também não terá a sua água em garrafa de plástico. 

Contactos: Rua das Escolas Gerais 120, Lisboa || Tel: 21 886 0399 /939 501 211

Co-autor do Mesa Marcada. Escreve sobre gastronomia no Público, Revista de Vinhos (crítica gastronómica) e em títulos internacionais como Cook Inc (Itália), Eater.com (EUA) e Gula (Brasil). É autor do livro “Lisboa à Mesa - Guia onde Comer. Onde Comprar”, com edições em português, inglês e espanhol (na Planeta).