As brincadeiras de criança eram muitas vezes na rua de Beja onde os seus tios tinham O Frade, fundado pelo avô em 1966, muitas vezes acompanhado pelo seu primo Sérgio. O restaurante, entretanto, fechou há vários anos. Hoje, aos 34 anos de idade, Carlos Afonso dá continuidade ao restaurante da família, mas agora em Lisboa, mais precisamente em Belém, mesmo ao lado do palácio presidencial, onde há dois anos e meio se estabeleceu – juntamente com o primo Sérgio Frade – num espaço dominado por um pequeno balcão em “U” que, agora, dispõe também de esplanada, e de uma cozinha com apenas 9 m2. Servindo pratos de clara origem alentejana, mas também claramente actualizados, O Frade foi um êxito imediato, conquistando clientela fiel e diversos prémios, inclusive os do júri do Mesa Diária 2019 (Prémios Mesa Marcada) e um Bib Gourmand, distinção com que o Guia Michelin assinala os restaurantes com melhor relação qualidade/preço.
Apesar destas fortes raízes, a vocação de Carlos Afonso para a cozinha não se manifestou imediatamente. Primeiro, aos 17 anos, veio de Beja para Lisboa para tirar um curso profissional de Marketing e Comunicação. Só depois surgiu o apelo da cozinha. “Estava dividido sobre o caminho a seguir, mas decidi experimentar a Escola de Hotelaria de Portalegre para ver como era”, recorda o chefe d’O Frade. Uma experiência que viria a se revelar decisiva, sobretudo por causa de dois formadores da escola, que muito o marcaram, José Júlio Vintém (chefe do restaurante Tombalobos, em Portalegre) e Alexandre Silva, então chefe do restaurante do Hotel Marmoris, em Vila Viçosa, onde Carlos Afonso foi fazendo estágios nos tempos livres, mesmo durante o curso.
Terminado o curso, acompanharia Alexandre Silva quando ele retornou a Lisboa para chefiar o Bica do Sapato, ao que se seguiram experiências profissionais em outros restaurantes lisboetas como o Bonsai, então chefiado por Ricardo Komori, e o Tabik, quando lá estava o chefe Manuel Lino. O aprendizado de Carlos Afonso continuaria, mas agora fora de Portugal, com diversos estágios na Bélgica e nos Países Baixos, nomeadamente no Pure C, restaurante do grupo do chefe holandês Sergio Herman, tornado famoso pelas três estrelas que detinha no Oud Sluis, que decidiu encerrar. E ainda no País Basco, no não menos famoso Azurmendi, do chefe Eneko Atxa.
A volta para Portugal seria pelo Algarve e logo pelo Ocean, do chefe Hans Neuner, onde ficaria mais de um ano, e depois pela abertura do Avenida, em Lagos. Foi então que pensou que estava na altura de empreender um projecto próprio, algo que sempre esteve presente nestes anos de aprendizagem, embora sem grande definição. “O Sérgio e eu falámos, mas não tínhamos muito ideia do que fazer. Surgiu este espaço em Belém e pensámos em algo como um balcão com vinhos da talha e petiscos alentejanos, mas rapidamente evoluímos para o que é hoje, mais ao estilo de um gastrobar. Aliás, foram, e são, os clientes que nos foram dando indicações sobre os caminhos a seguir”, conclui Carlos Afonso, cuja “evolução”, não é difícil de adivinhar, terá ainda muito a mostrar.
Falta ainda dizer que o entrevistado deste Menu de Interrogação, que tem o patrocínio da Estrella Damm, no âmbito do seu apoio à gastronomia, apesar das suas origens numa cidade do interior (ou talvez por causa disso), é um apaixonado pelo mar, sendo praticante regular de surf, pesca e caça submarina. “O mar é fundamental para o meu equilíbrio, não posso dispensar. Até faço os meus horários aqui no restaurante em função do estado das ondas…”, revela Carlos Afonso.

Como é que se dá aquele momento em que se deixa de ser um cozinheiro de uma brigada e se passa a dirigi-la, a criar, a comandar uma equipa? Há um clique, um momento chave? Como aconteceu consigo?
Bom, na minha opinião não existe um padrão, esse momento é diferente de pessoa para pessoa, para uns chega mais cedo para outros mais tarde. Acho que está sempre relacionado com aquilo que cada um quer para si, com a oportunidade e o momento. Penso que o comportamento mais ortodoxo e padrão será a formação académica, o posterior ingresso no mercado de trabalho e porventura os anos de experiência e a aprendizagem, passar por vários restaurantes de que se gosta e tem interesse, passar por todas as secções. É esse, normalmente, o percurso comum que um cozinheiro faz, mas existem excelentes cozinheiros que são puros autodidatas, abriram um negócio e foram crescendo com o tempo. É, na minha opinião, um caminho mais difícil, mas tão legítimo como outro qualquer.
No meu caso em particular, a primeira vez que senti esse desafio, foi quando estava em Beja, na minha cidade natal, e durante um momento de pausa, depois de ter andado a viajar e a trabalhar em vários restaurantes lá fora. Precisava de fazer alguma coisa e então fui ter com um amigo que tinha o restaurante Vovó Joaquina, em Beja, e perguntei-lhe se não precisava de ajuda uns tempos para organizar a casa e formar as equipas. Ele aceitou e um projeto que era para durar um mês durou três. Foi durante essa experiência que me coloquei a prova e que descobri aquilo que queria fazer no futuro enquanto chef. Mas ainda assim achava que me faltava alguma base e terminado este período voltei para os restaurantes mais uns anos. Fui trabalhar para aprender mais e crescer tecnicamente. Até um dia surgir O Frade.

O Frade será sempre um restaurante acessível, de matriz regional com um toque contemporâneo, ou aspira a ser mais?
Creio que sim, acho que a definição está ótima, eu próprio não o conseguia definir tão bem. É um restaurante acessível a todos, de matriz regional, com algumas abordagens mais contemporâneas e outras mais clássicas e tradicionais. Em termos de aspirações, aspiramos todos os dias em melhorar aquilo que pode ser melhorando, crescer enquanto profissionais, enquanto equipa, enquanto projeto, ter a casa cheia e clientes felizes.
O Alentejo tem uma cozinha regional muito considerada e que muitos gostariam que fosse estática. Como é que olha para esse património? Quando acrescenta algo mais autoral a um prato sente alguma responsabilidade acrescida, por ter raízes alentejanas?
Não diria o Alentejo, mas sim todo o território nacional, tem uma cozinha regional e uma identidade gastronómica muito forte. Nós somos Portugal, um país com história, com uma cultura imensa, e temos de preservar isso. Aliás preservamos muito bem essa identidade, há um trabalho muito grande que está a ser feito, basta olhar para a minha geração de cozinheiros e para o que as mais antigas nos transmitem. Existe um respeito enorme pela cultura e identidade gastronómica portuguesa, pelo menos falo do universo que conheço e que está à minha volta. As pessoas têm respeito e carinho pela cozinha regional, conhecem-na, respeitam-na, aprendem com a avó, com a mãe, com a tia, o tio, registam receitas e partilham-nas, difundem fornecedores e pequenos produtores e isso é muito bonito. Às vezes, acontece-me, enquanto dou aulas na escola de hotelaria, um aluno chegar-se ao pé de mim e da turma: “Chef, tenho uma receita de arroz doce que a minha avó fazia, posso trazer para a aula?” Não é incrível?
Relativamente a segunda parte da pergunta, não sinto qualquer responsabilidade por ser alentejano, que tal tenha que condicionar o meu trabalho. Gosto de sentir que sou livre, adoro as minhas raízes, aquilo que me foi passado, mas também sou português e sei muito bem que se come bem de norte a sul do país. Gosto muito de aprender, de explorar sobre gastronomia, e quero continuar a fazer esse trabalho. Aprender todos os dias é o meu mote e o da minha equipa, acreditamos que é esta forma de estar é o que nos faz crescer.

Há hoje muitos cozinheiros muito preocupados com horários de trabalho, tempo para a família, interesses e actividades extra-profissionais…. Como lida com essas questões?
Acho de uma importância tremenda, a todos os níveis. É importante? Sem dúvida que é. Mas não é assim que devia ser SEMPRE? Claro que é! Mas este problema é transversal a várias profissões, não só aos cozinheiros, embora eu ache que as coisas estão um bocado melhores nesse sentido. Horários, folgas, horas extra, para mim e na minha forma de liderança, esse é um ponto fulcral, organizo-me da forma que posso para que a minha equipa consiga ter esse tempo e essa qualidade de vida. Gosto de entrar no restaurante e perceber que as pessoas estão bem, estão frescas, têm energia, há bom ambiente, estão felizes e sentem-se realizadas profissionalmente, estão a crescer. Dou muita importância a isso e posso garantir que os clientes o sentem.
Claro que esta gestão me obriga a uma sensibilidade muito grande e é possível numa equipa pequena de 10 pessoas. Conhecer cada um deles, perceber o que é que cada um valoriza, ajudá-los a atingir os seus objetivos profissionais é algo que faz parte do nosso compromisso. Eu faço isso comigo, tento encontrar o equilíbrio entre trabalho e vida pessoal. É muito importante, só assim se mantem tudo. Enquanto chefs, somos, além de cozinheiros, líderes, e temos que estar atentos a isso. Os tempos estão a mudar, as pessoas também. Hoje em dia, é preciso olhar para essa mudança se queremos abraçar o futuro.
As novas gerações, onde me incluo, estão cada vez mais bem formadas, falam no mínimo duas ou três línguas, dominam as tecnologias, têm acesso a mais informação do que nunca, uma enorme facilidade em viajar. Estão, a meu ver, mais capacitadas e bem formadas que há 40 ou 50 anos, é normal que sejam mais exigentes também com o mercado de trabalho. Precisamos de tempo para viajar, conhecer mercados, restaurantes, comprar e ler livros, conhecer produtores, fazer network com outros chefs, ir a congressos. E isso não é importante para o crescimento profissional? É! E ainda bem, porque é a olhar em frente que evoluímos.
No balcão do Frade, há uma grande proximidade entre os cozinheiros e os clientes. Costuma observar as reações que despertam os pratos que lhes serve?
Claro que sim, essa é a nossa essência servir. É estar próximo, perceber se determinado prato funciona o não. É uma grande escola, porque temos (percebemos) o feedback imediato. Aliás, é o cliente que nos diz o que está mal e o que devemos melhorar. Muitas vezes, muitas mesmo, é nestes diálogos que aprendemos coisas novas, receitas, ideias, coisas que os nossos clientes partilham connosco. Temos também por isso uma responsabilidade acrescida, porque tudo o que colocamos na carta tem de estar bom!! Por que se não tiver, o cliente vai nos dizer e somos nós que ali estamos. O peso dessa responsabilidade sente-se.

Qual a importância do turismo no êxito do Frade e no dos seus futuros projetos na restauração?
Eu acho que o turismo tem sido fundamental em vários aspetos, somos um país incrível como todos sabemos, quase 300 dias de sol por ano, superseguro, simpáticos, adoramos receber, somos baratos comparativamente ao resto da Europa e isso obviamente desperta o desejo dos visitantes. No Frade, 80% do nosso volume de negócios é feito por portugueses, o que nos deixa muito orgulhosos, adoro trabalhar para o público português. Diria que, dos 80%, uma boa percentagem são pessoas da indústria da restauração, o que nos deixa ainda mais orgulhosos e satisfeitos. Aproveito e agradeço a todos o apoio e o carinho com que nos têm tratado.
Em relação a projetos futuros, a curto prazo, para já gostávamos de nos manter com o mesmo target e posicionamento, melhorar o que há para melhorar, crescer e seguir em frente. As nossas ambições são cozinhar bem, com sabor, estar próximo das pessoas e partilhar a nossa paixão por esta indústria.
Quais os chefes portugueses e estrangeiros que mais o influenciaram?
Bom, os chefs que mais me influenciaram foram aqueles obviamente com quem trabalhei. O primeiro foi o Alexandre Silva, que ainda hoje me continua a influenciar e que admiro muito enquanto cozinheiro e empresário, líder. O segundo talvez o chef Hans Neuner, do Ocean, pela paixão que tem por Portugal, pelo produto português, e pela sua resiliência e personalidade. É um chef ultra exigente, mas com uma vibe incrível, que me ensinou muito sobre o mais importante: SABOR! Um chef que me influenciou muito também foi o Rui Sequeira, do Alameda, pela sua criatividade, forma de ser e cozinhar e estar na cozinha, espírito lutador jovem e boa vibe, com quem me identifico.
No estrangeiro, o Sergio Herman, com quem fiz um estágio, que mudou a minha forma de encarar a cozinha e o trabalho.
Se pudesse escolher um qualquer restaurante do mundo para fazer um estágio, qual seria?
Voltava a qualquer um dos do Sergio Herman
Sente que depois da pandemia tudo será como antes na restauração ou há mudanças que vieram para ficar?
Em relação à pandemia, espero que isto acabe o mais rápido possível, acho que tudo irá voltar a normalidade. E que ansiosos estamos todos por isso, não é? Mas há oportunidades de negócio que vão ficar, acho que vamos todos estar muito mais abertos a encomendar comida em takeaway, as estruturas de entrega e delivery irão ficar a funcionar muito melhor em termos eficácia e eficiência, e os conceitos private chef, eventos em casa, são oportunidades de negócio e obviamente vieram para ficar.
A pergunta da praxe: se o mundo acabasse amanhã, como seria a sua última refeição?
Se o mundo acabasse amanhã não sei se teria fome, ahaha. Na visão romântica da coisa, se o mundo acabasse amanhã, gostava que a minha ultima refeição fosse um peixe pescado por mim à linha ou na caça submarina (duas atividades que adoro), grelhado numa fogueira algures na Costa Vicentina, de frente para o mar, a ver o pôr do sol no horizonte e a beber um copo de vinho de talha branco fresco, se possível rodeado de família e amigos.

Patrocínio:

Posts Relacionados:
. Luís Baena: “Não tenho vontade de pagar trespasses ou rendas com preços absurdos”
. Menu de Interrogação – Teresa Vivas: “É como se os produtos fossem notas e o receituário uma música”
. Menu de Interrogação – Marta Figueiredo: “Cozinhar será sempre a minha forma primordial de comunicação”
. Menu de Interrogação – Rui Silvestre: “Tive de reestruturar todo o projecto do restaurante”
. Menu de Interrogação – Alfredo Cunhal Sendim: “O respeito pelo produto é, normalmente, um chavão”
Adoro a comida do Frade. Adoro o balcão, que nos escancara todo o serviço, tudo transparente. Adoro o diálogo que se proporciona, tão próximo, entre quem faz e quem usufrui.
Mas o preço dos vinhos é absolutamente descabido. Ter um preço na garrafeira diferente (inferior) ao do consumo no restaurante, sem uma indicação clara, e com a garrafeira já com um preço inflaccionado, é o enorme calcanhar neste Aquiles quase-perfeito.
Pela comida, atmosfera e serviço, sempre. Pelos vinhos, menos. Muitas menos vezes visito este Frade por isto mesmo.
GostarGostar