Menu de Interrogação

Luís Baena: “Não tenho vontade de pagar trespasses ou rendas com preços absurdos”

É uma pergunta que se ouve frequentemente entre os interessados em gastronomia: “Por onde anda o Luís Baena?” De facto, desde a metade da década de 2010, quando encerrou o seu restaurante lisboeta Manifesto e tentou um projecto em Londres que acabaria por não ser bem-sucedido, que este chefe nascido em Lisboa há 63 anos anda arredado das luzes da ribalta. Mas a verdade é que o trabalho que desenvolveu ao longo da sua extensa carreira, que o levou aos quatro cantos do mundo, permanece na memória de muita gente, nomeadamente daqueles que na primeira metade dos anos 2010 tiveram ocasião de ir à Quinta de Catralvos, restaurante de um produtor de vinhos de Azeitão, onde Luís Baena surpreendeu com uma cozinha que utilizava inteligentemente as técnicas vanguardistas, adaptadas à nossa realidade.

Apesar de só ter durado uns quatro anos, o restaurante da Quinta dos Catralvos foi, para os apreciadores portugueses da cozinha de Luís Baena, o ponto mais marcante de uma carreira que começou, também de forma algo original, quando ele, aos 19 anos de idade, foi para Bruxelas “atrás de uma namorada”. Na altura, Portugal ainda não estava integrado na União Europeia e os vistos de permanência eram difíceis. Por isso, apesar de não ter experiência no sector, nem ninguém na família a ele ligado, decidiu experimentar ser cozinheiro no restaurante-escola La Tsampa, onde aprendeu bases de cozinha com um chefe francês chamado Yves (já não se lembra do apelido). Dois anos depois voltou a Lisboa e decidiu que a cozinha iria continuar a ser a sua vida, trabalhando no recém-aberto Le Jardin, na Rua de São Bento (onde depois seria o primeiro XL, depois o primeiro restaurante de Augusto Gemelli e é agora o Parlatório), seguindo-se um restaurante francês no Bairro Alto, de nome Pile ou Face (“Cara ou Coroa”, em francês) e ainda no Rapatacho, junto à Praça das Flores. Na altura, em Lisboa, havia poucas opções de cozinha internacional, e ele pode dar bom uso ao que tinha aprendido em Bruxelas, com recorda nesta entrevista.

E foi atrás de outra namorada que este irrequieto chefe daria nova volta na sua vida, mudando-se para o Brasil – inicialmente para Salvador da Bahia – país onde ficaria vários anos, trabalhando em cidades como Goiânia, na abertura do hotel cinco estrelas Caeser Park, em São Paulo, na abertura do hotel Hilton, ou no Rio de Janeiro, no restaurante que Paul Bocuse mantinha no hotel Méridien. Viria então a fase dos barcos de uma companhia norueguesa que fazia cruzeiros na costa mexicana do Pacífico e no Extremo Oriente até, após várias aventuras, retornar a Portugal em 1994 para abrir o hotel da Penha Longa, cujo único restaurante era o Club House do campo de golfe, situado onde hoje estão o Lab e o Arola. Após três anos, novas experiências no Algarve (hotel em Moncarapacho, hoje o Vila Monte), participação como jurado num concurso europeu de cozinhas regionais presidido por Joel Robuchon, passagem para o restaurante do Clube Militar de Macau e depois pelo Il Rigoletto, restaurante italiano de Hong Kong.

Nova volta a Portugal, desta vez para chefiar os restaurantes dos três barcos-hotel que funcionaram durante a Expo 98, seguindo-se o grupo Gertal (restaurantes no CCB e golfe da Aroeira, entre outros) e o Café no Chiado, pertencente ao Centro Nacional de Cultura, onde o público lisboeta, apesar das condições estarem longe das ideais (“quando passava o eléctrico 28, o frigorífico desligava-se”, recorda), voltou a ter um contacto com a sua cozinha. E assim chegamos a Catralvos, ao Manifesto, ao trabalho para os hotéis Tivoli e para o grupo Sonae. Hoje, respondendo à pergunta inicial, dedica-se a várias consultorias em Portugal, dando ênfase a projectos de âmbito social e de desenvolvimento do interior, bem como às de carácter ambiental. Mas será que voltaremos a ter um restaurante com assinatura de Luís Baena? Tente descobrir lendo este Menu de Interrogação, que tem o patrocínio da cerveja Estrella Damm, no âmbito do seu apoio à gastronomia.

De Janeiro a Dezembro: descubra como evolui o dia a dia de quem torna possível cada Estrella Damm que bebemos.

Já tinha uns bons anos de carreira quando abriu o restaurante da Quinta de Catralvos. Ainda assim, foi uma espécie de OVNI que aterrou em Portugal, apesar dos novos ventos que chegavam de fora. A que se deveu esse fenómeno? E como observa hoje, à distância, o que fez nessa altura?

Espero que não me tenham confundido com um ET! A minha forma de trabalhar não se alterou substancialmente. Acho que foi evoluindo. Fui aprendendo e viajando, conhecendo novas culturas e, naturalmente, tudo o que a elas está ligado, nomeadamente relacionados com “a cozinha”. O tempo foi passando e as oportunidades foram surgindo. O panorama da restauração e dos hábitos alimentares foram-se alterando.

Quando regressei a Portugal, foram dois restaurantes franceses os primeiros onde mostrei o que tinha aprendido. Lembro-me que, em 1982, que eu saiba, para além do Gambrinus com os seus crepes Suzette, talvez alguns ainda servissem o “quente e frio” ou “branco e negro” que era um misto de temperaturas de uma sobremesa gelada com chocolate quente. 

Não inventei, não criei nada, importei e partilhei os conhecimentos do que tinha absorvido.

Espero não ser mal interpretado. Que eu saiba, não se serviam sobremesas quentes como crumbles ou tarte Tatin. No caso desta última, tive a sorte de ter aprendido a receita com o chef francês Yves (não me lembro do apelido) que, por sua vez, a aprendeu com as irmãs Tatin. Mas não só. O cheesecake também foi bem acolhido pelos clientes do Le Jardin, em S. Bento, e no Pile ou Face, no Bairro Alto.  Naturalmente, e como sempre acontece, começaram a aparecer estas e outras receitas noutros restaurantes. E isso foi e é salutar, desde que não se passe a ideia de que fomos os seus criadores, tal como eu não o fui.

Apesar da maior parte da minha formação ter sido feita num misto de cozinha vegetariana com as bases clássicas da cozinha francesa, em Bruxelas, os dois restaurantes já referidos eram de cozinha francesa, com alguns clássicos ainda, mas com grande influência da nouvelle cuisine. Sei que foi mal interpretada muitas das vezes, com a ideia da “ervilha no centro de um prato grande” e a pagar uma pipa de massa! Houve e continua a haver imensos processos, estética, cuidados nutricionais e pontos de cozedura que fizeram e continuarão a fazer sentido, 

O prato com a folha de alface, rosa de pele de tomate e cenoura ralada foi um campeão de resistência. Numa prova de vinhos em 2008, fui surpreendido com esse pormenor de bom gosto de que já não me lembrava. Na actividade profissional de cozinha há de tudo.

Ainda sobre a criatividade, não me limitei a apresentar as novidades que fui aprendendo. Lembro-me de no Rapatacho, por gostar de ostras e por estas serem menos acessíveis à época, resolvi fazer croquetes de ostra.  Passados vinte e tal anos, lembrei-me da ideia, resgatei a receita ao passado e dei-lhe um novo sentido estético.

Croquetes de ostra

No Le Jardin e no Pile ou Face também me fui emancipando à procura de novos produtos. Na altura, só os fornecedores de batata e de bebidas é que iam fazer entregas aos restaurantes, pelo menos nos que trabalhei. Tinha assim que ir diariamente ao actual Mercado 31 de Janeiro. O cenário era desolador na área dos hortícolas, uma pobreza franciscana. Se queria alcachofras ou beringelas ou outra coisa como espargos e courgettes, consideradas exóticas, ou ia à Charcutaria Brasil, à Martins & Costa e pouco mais. Por outro lado, as bancas de peixe eram variadas e abundantes.

Fui convidado para novo restaurante que queria representar a alma lusa apesar de fazer vénia à cozinha francesa. Numa sociedade em que havia uma figura que, mais tarde, se tornou pública, as divergências foram-se acentuando. Inicialmente gostei do projecto até porque foi aí que comecei a trabalhar a cozinha portuguesa numa perspectiva profissional. Isso obrigou-me a estudar e pesquisar. Nos anos 80 havia muito pouca literatura sobre o assunto e a net ainda estava distante. Foi bom porque a informação chegava-me através do amigo do vizinho que era primo do primo da não sei quantas…

Assim, parti para Terras de Vera Cruz à procura de novos produtos e de culturas como acontece na maior parte dos países do continente americano, povoados por imigrantes de várias latitudes. Um admirável Mundo Novo. Um problema grave de saúde afastou-me dos fogões durante uns meses o que foi bom porque me permitiu reflectir e pensar sobre os passos a dar no futuro.

A variedade exuberante de flora tropical era inspiradora. Fui separando sabores e texturas, cores e contrastes e, abstraindo-me dos produtos em si, imaginando e concretizando o que faria sentido quer como ligações quer em sentido estético. Foi um exercício inconsciente, não tenho um espírito cartesiano. Fi-lo por necessidade de manter alguma sanidade emocional e ocupar o tempo de forma produtiva.

Desde então, e antes de me tornar ET, o meu caminho profissional levou-me a conhecer mais terras, produtos, profissionais com quem muito aprendi, mas levou-me igualmente a ser mais ousado na criatividade e a mudar alguns vícios da aprendizagem clássica francesa, nomeadamente no que à disciplina das brigadas de cozinha diz respeito. Imaginem uma brigada com mais de 150 cozinheiros dos quais só havia dois ocidentais, eu incluído.

Loose the face” é uma expressão constante na cultura da China. O cuidado com a gestão destes profissionais fez-me capitular e terminar com a gritaria e conter a testosterona, reservando-a para situações mais interessantes. Diplomacia com firmeza passou a ser o meu mantra.

Como diz Olga Tokarczuk [escritora polaca, vencedora do Prémio Nobel de Literatura em 2019]:

“Pelos vistos, não herdei o gene que faz com que as pessoas criem raízes quando permanecem muito tempo no mesmo lugar. 

Já tentei várias vezes, mas as minhas raízes são sempre superficiais e qualquer brisa é capaz de me arrancar à terra. Não sou capaz de germinar, fui desprovida dessa qualidade vegetal. Não absorvo as seivas da terra, sou o oposto de Anteu. A minha energia provém do movimento.”

Luís Baena no Norte do Vietname

Depois de Catralvos, pensou-se que Lisboa ia ter verdadeiramente um restaurante vanguardista, ou melhor, com toda a expressão vanguardista de Luís Baena. Tal nunca chegou a acontecer. Ainda abriu o Manifesto, mas depois passou a dedicar-se sobretudo à consultoria. O que o levou a desistir? 

Passo a partilhar um documento [N.D.R. texto a publicar num dos próximos dias] que enviei na altura para o Miguel Júdice e que, bem aconselhado por ele, não cheguei a concretizar. Achei que faria sentido, mas, como o Miguel disse, e bem, Lisboa não tinha público nem escala para tal. Esse teria sido um projecto avant-garde seguramente, mas, muito provavelmente, uma ruína financeira. Para que fique claro, não foi o Miguel Júdice quem me levou a desistir.

Encarei a realidade e fiz-me à estrada. Hotelaria é uma área de que gosto porque as condições de trabalho, não em todos os hotéis, são melhores. No entanto, a frase assassina dita e redita em Portugal sobre “comida de hotel” não foi sempre verdade e, actualmente, menos ainda.

O Grupo Tivoli estava numa fase de rebranding. O Vitor Sobral organizou um (não sei a palavra certa) evento, congresso, workshop, etc. a que chamou “Comidas do Mundo” no lobby do Tivoli Avenida. Entre os vários participantes esteve o Alex Atala. Achei que se o C.E.O. do grupo Tivoli tinha uma visão disruptiva que passava por uma mudança evolutiva também nas áreas de restauração, seria um desafio interessante e desafiante. 

Reinava a anomia na identidade corporativa dos Tivoli. Um chef só trabalhava com leite da marca A, o outro da marca B e isso vezes (acho, não estou seguro) 12 hotéis em Portugal e mais no Brasil, era ruinoso para as compras. Por outro lado, quase todos os chefs criaram o seu “Hambúrguer Tivoli”. Um era redondo, o outro quadrado, um com molho A e outro com molho B, e por aí fora. Faltava uma imagem coerente e corporativa que era fundamental criar.

Mais uma vez a sorte bateu-me à porta. Como responsável máximo por esta mudança tive o prazer de trabalhar com um dos melhores profissionais e pessoa integra que encontrei ao longo dos meus mais de 40 anos de actividade.

As solicitações eram muitas e ainda não tinha aprendido a dizer que não. Fui acumulando várias consultorias, comecei a dar os meus primeiros passos a defender e apoiar causas sociais e achei que o Manifesto seria conciliável com tudo isso. Mais olhos do que barriga. De facto, é verdade, temos dois olhos e uma barriga! Houve coisas positivas e outras que correram mal.

O único culpado fui eu. Num trabalho de equipa é fundamental confiarmos nas pessoas. Tive essa sorte e privilégio ao conhecer a Marlene Vieira. Não fosse o defeito de ser do FCP, seria uma Chef Perfeita.

O que é que a restauração em Portugal ainda poderá esperar de si? 

Boa pergunta, próxima pergunta?  Continuo com uma actividade ligada a causas que muito prazer e satisfação me tem dado. Tenho, naturalmente, o “bichinho” da cozinha de restaurante, do stress da cozinha, e de mais algumas coisas. Não tenho vontade de pagar trespasses ou rendas com preços absurdos, de ter na equipa pessoas mal preparadas, outras que querem engordar os curricula vitae que, sendo legítimo, obrigam a estar constantemente a formar novas equipas. 

Por outro lado, Lisboa e Portugal em geral não está disposto a pagar um justo preço pelo valor das coisas.  Almoça-se e janta-se fora com uma facilidade que só encontrei na Ásia. Mas as semelhanças acabam aí. É pá vai a tal restaurante, um prato dá para três! Não pago salários mínimos a ninguém que trabalhe comigo. Sendo sérios e fazendo bem as contas, as margens que a restauração liberta actualmente são mínimas e requerem um enorme rigor. Parte-se um copo, uma reclamação, manutenção de equipamentos, falhas eléctricas. 

Partilho este link que já enviei a alguns amigos e colegas de profissão. A opinião deles foi unânime: https://www.youtube.com/watch?v=pv5cwM5vmeg. Esta é a realidade, lá como cá.

Não descartei completamente a ideia. Como sempre acontece, para perceber o presente, recordo-me do passado para ter uma ideia de possíveis futuros.

tiborna de presunto com gema trufada

Quem são os chefes de hoje que admira e os que vão dar cartas amanhã? (Cá e no estrangeiro) 

É sempre ingrato referir alguns nomes e esquecer outros. Compreenderão que dê alguns exemplos dos que conheço melhor e que acompanho há mais tempo. Peço desculpa a tantos que não menciono aqui. Sem ordem de preferência ou do que quer que seja, somente por ordem alfabética:

Alexandre Silva, Bertílio Gomes, Bruno Rocha, David Jesus, Henrique Sá Pessoa, Hugo Ferreira, Joana Martins (ainda não mas há de lá chegar, espero), João Lameiras, João Rodrigues, João Sá, José Avillez, Marlene Vieira, Miguel Castro Silva, Pedro Pena Bastos.

Se me permitirem, até porque a sobremesa pode salvar uma refeição:

Diana Leal, Francisco Siopa, Joaquim Sousa, Márcio Baltazar

Dos países que conhece, quais são aqueles que destaca pela cultura gastronómica? E pela falta dela?

Nem tudo o que se tem como referência na cultura gastronómica dos países corresponde à sua essência. Os clichés têm campo fértil. Assim como o Japão não é só sushi, muito menos com manga e molhos duvidosos, o Peru não é só ceviche, o México não é Tex Mex, Portugal, sobretudo Algarve, não é chicken peri-peri ou grilled fish. Isto para dizer que não é forçosamente o receituário mais conhecido de cada país o embaixador da sua cultura gastronómica.

Voltando ao Peru, é não provar a cozinha crioula, com entrada gloriosa pela porta do restaurante Brujas de Cachiche em que, por sorte imensa, estava a cantar a Susana Baca ou estar no Québec e não ir à Sucrerie de la Montagne e conhecer o personagem Pierre Fauché.

Isso é cultura em geral acompanhada com cultura gastronómica também. Os clichés das cozinhas locais, regionais e outros que tais, não viajam. 

Dificilmente, só para não dizer que é impossível, se hoje almoçar no Minho e pedir um caldo verde e, sabendo a receita com rigor, tentar reproduzi-lo em Lisboa, sei que não vou conseguir o mesmo resultado. A água é diferente, a batata, provavelmente também o é, a couve esteve sujeita a mais frio e isso alterou-a ficando com sabor diferente das produzidas na Região Oeste.

Tenho tido sorte em poder conhecer vários países e sempre com o tempo suficiente para aprender os traços principais das suas culturas, inclusive a gastronómica. Curiosamente, a Dinamarca foi a excepção, ou quase. A primeira ida a Copenhaga foi com a única intenção de ir jantar ao Noma. Fui com um amigo como companhia e com outro à boleia uma vez que era o comandante do avião. Só retive a experiência do jantar e pouco ou nada fiquei a saber sobre o que se passava fora do restaurante com a excepção do ÆBLESKIVER. Mais tarde, com uma das minhas filhas já a estudar na Dinamarca, tive oportunidade de ir mais vezes e de constatar que não perdi nada no que a cultura gastronómica diz respeito. 

Karen Blixen retrata muito bem o que era a alimentação e a atitude espartana dos dinamarqueses.  Não são os únicos. Esses povos do Norte têm hábitos diferentes dos nossos, povos do Sul, que, segundo alguns, espero que poucos, só gostamos de beber vinho e de mulheres. Ainda bem. Já alguém provou frikandel, ou a sopa que comem religiosamente ao jantar? Estou a falar dos holandeses. Por outro lado, a cozinha alemã tem preciosidades desconhecidas pela esmagadora maioria das pessoas. Não só em produtos como em receituário.

Falar da Ásia é difícil porque há imensas culturas e territórios vastos com uma diversidade imensa. Pessoalmente, fiquei surpreendido com a cozinha Khmer. Tem sabores e conjugações subtis apesar de apelar também a sabores intensos. Os recursos vegetais são inúmeros. O Camboja não são os abomináveis Khmer Rouges, têm a delicadeza na rudeza da cozinha.

São, como todos os países do Sudeste Asiático, em geral, influenciados pelos molhos e temperos do Império do Meio. A flor frangipani, além da beleza que cativa, é uma descoberta de sabores impossíveis. Surpresa para quem já tinha estado em tantos territórios onde existem plantações de bananeira. As flores de bananeira foram uma descoberta, mais ainda pensando que se podem e devem aproveitar. Frescas e cozinhadas são de chorar por mais. De conserva, são de evitar.

Em África, e uma vez que se trata de cultura gastronómica, na zona de fronteira entre o que poderia ter sido o Biafra, e os Camarões, percebi melhor a cozinha da “Bahia de Todos os Santos”. Assim como os famosos “Quindins de yáyá” evoluíram a partir das “nossas” Brisas do Liz, também as moquecas, vatapás, caruru e outros pratos, embaixadores da cozinha baiana, não confundir com o meu apelido, evoluíram a partir da cozinha nigeriana.

Os temas relacionados com viagens e destinos exóticos são como pãezinhos acabados de cozer. Podia continuar aqui o resto do dia.

Sintetizando e baralhando, os países que mais me influenciaram do ponto de vista de cultura gastronómica são, por diferentes motivos justificáveis e sem ordem de preferência, os seguintes: Portugal, Itália, Espanha, França, Marrocos, Grécia, Israel, México, Peru, Japão, China, Vietname, Tailândia, Camboja. Singapura é um caso à parte, multicultural e, consequentemente diverso.

Provavelmente alguns me escaparam, mas foi como com os meus colegas. Desculpem países.

Ao largo da costa Mexicana

A origem dos produtos é hoje mais importante para os chefes do que as técnicas de cozinha?

Se é, é um erro! Como cozinheiros devemos render-nos aos produtos, entendê-los e respeita-los.  Sejam eles animais ou hortícolas todos são ou foram seres vivos. A expressão “inorgânico” aplica-se às pedras, rochas e tudo o mais relacionado, e, pelos vistos, actualmente também à política portuguesa.

As técnicas, se bem aplicadas, servem para enaltecer, valorizar o produto. Através do corte, da temperatura a que se cozinha, com a técnica certa para determinado receituário. Lamentavelmente, há muita informação errada, nomeadamente no que à técnica diz respeito.

Em Portugal, o próprio léxico profissional tem falhas. Imaginem irem com um estrangeiro a um restaurante de praia e pedir dois pratos tão simples como cherne grelhado e sardinha assada. O quê? Porque é que estando no mesmo instrumento (a grelha) usando a mesma técnica (grelhado) porque é que tem dois nomes diferentes? Mas isso aplica-se a muita confusão com os nomes, alguma ignorância e pouco interesse em melhorar.

Atum braseado? Ok. Feito nas brasas, presume-se. Presume-se mal! Braisé é uma técnica de cozedura lenta, mijotée, com líquido em tacho tapado, no forno. Onde é que estão as brasas? Provavelmente com o Wally!

Voltando ao início, de facto, ambos são importantes, a origem dos produtos a que poderia acrescentar a sazonalidade e o tamanho. O tamanho tem que ver com o mau hábito que existe de deixar alguns hortícolas crescerem muito para ficarem bem na fotografia.

Os rabanetes, em Portugal, são incomestíveis. Ocos, sem textura, sem suco. Devem ser apanhados enquanto estão com o tamanho certo. Tamanho não é documento! As courgettes, só para mencionar um, são enormes armas de arremesso, mas pouco sabores têm quando o peso foi ultrapassado. Com quê? Água, naturalmente. É só água. Já agora, porque é que lhes chamamos courgettes e não aboborinhas? Zuchini é o diminutivo de zucca, abóbora, courgette é o diminutivo de courge, abóbora…

Cabe-nos, aos cozinheiros, falarmos com os produtores e distribuidores e dar-lhes o nosso parecer, fundamentado, sobre os benefícios de melhores práticas agrícolas. Menos água, mais sabor, mais sabor e mais aroma, melhor textura e melhor domínio técnico com menos água.

A técnica é parte da receita tal como os produtos e a história por trás da receita.

Interpretação de cabeça de xara

Nos restaurantes actuais, a hierarquia e organização tradicional das cozinhas ainda faz sentido?

Depende do restaurante, da capacidade e do número de clientes em simultâneo que isso implica, do conceito de cozinha e da sua oferta. Seguramente que estamos longe dos tempos de Escoffier. Prefiro a figura do tournant mas, antes de lá chegar, é preciso conhecer profundamente as várias áreas da cozinha. Repito, nada a ver com as brigadas do tempo de Escoffier apesar do seu trabalho ter sido fundamental para a organização existente, mas adaptada a novas tendências e padrões.

No pós-pandemia, os restaurantes vão ser muito diferentes do que eram antes?

Gostaria que sim, para melhor.  Claro que não falo em TODOS OS RESTAURANTES.  Já é bom que comecem a mudar de práticas e a sentirem-se responsáveis pela pegada ecológica.

Além dos restaurantes, espero que os hábitos alimentares das populações em geral evoluam para alternativas ao novo-riquismo associado à restauração e alimentação em geral. A quantidade de proteína animal que se consome é má em todos os sentidos. Saúde, ambiente, erosão dos solos, anormalidades a montante em grandes produções com desrespeito total pela curta vida de alguns animais a “viverem” em condições degradantes. Se preciso de um antibiótico vou à farmácia, não ao supermercado. Se a carne for boa carne e de quem usou boas práticas nada tenho contra o seu consumo. Moderadamente e sem exageros é parte integrante da cultura de muitos povos.

Há princípios que devemos incutir nas nossas “brigadas”. É importante percebermos que estamos sujeitos aos caprichos da Natureza, e temos que os respeitar. Parte do que nos deixa tão pouco preparados para uma pandemia como a que estamos a sofrer agora é esse tipo de arrogância que as pessoas têm de que a nossa civilização conquistou a Natureza e a subjugou. Simplesmente não é o caso. A Natureza é mais esperta do que nós.

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Não se podem “desmexer” ovos mexidos. Nesse pressuposto, sei que não se deve abusar da Natureza. Haverá quem possa pensar, e com todo o direito, que agora virei para um novo personagem com uma nova identidade.  Cometi os erros iniciais, precisamente nos restaurantes franceses, de ter uma carta rica em cortes de carne de vaca e de novilho. Até os molhos eram exagerados.

Para quem se lembre dos restaurantes em que já trabalhei, reconhecerá que a proteína animal sempre foi servida em doses equilibradas, na maior parte dos casos parcimoniosamente. Havia quem reclamasse que era pouca carne. Até houve um colega que se queixou do mesmo. Sempre tive diversidade de “acompanhamentos” que podem ser os actores principais.

No já referido restaurante da Quinta de Catralvos, antes da sua abertura, fiz uma lista exaustiva de pratos que iria ter presentes ao longo do primeiro ano para sondar as opiniões divididas e tentar perceber o que deveria estar ou ser retirado. Lembro-me de um amigo me ter chamado à atenção de que não havia nem um bife. É verdade, tal não me passou pela cabeça. Acabei por incorporá-lo na carta, mas, felizmente, nunca se tornou um show breaker apesar de o meu amigo ter tido razão e haver alguns clientes a pedi-lo

Li com agrado que o Daniel Humm, chef no Eleven Madison Park, o chef José Avillez e o chef João Rodrigues irão fazer alterações nas suas propostas de menus. Isso são óptimas notícias. Só lhes posso, sinceramente, desejar o sucesso merecido com tal atitude. A evidência dos benefícios do consumo de plantas é que as plantas, e para que seja claro, não são os compostos nas plantas. Não é o beta-caroteno, é a cenoura!

A evidência é muito clara de que as plantas promovem a saúde. Esta evidência é esmagadora neste ponto. Comendo mais plantas comemos menos outras coisas, vive-se mais e melhor e o planeta agradece. Nada mal! Não precisamos de animais nem de junk food para sermos saudáveis. Não precisamos de produtos de origem animal e, certamente, não precisamos de pão branco nem de Coca-Cola. Ambos têm um marketing fortíssimo, criando uma procura anormal.

Não nascemos com desejo de Nutella nem de M&Ms. É importante percebermos que estamos sujeitos aos caprichos da Natureza, e temos de respeitar isso. Parte do que nos deixa tão pouco preparados para uma pandemia como a que estamos a sofrer agora é esse tipo de arrogância que as pessoas têm de que a nossa civilização conquistou a Natureza e a subjugou. Simplesmente não é o caso. A Natureza é mais esperta do que nós. Precisamos de agir. Esta não é só uma questão de justiça social, mas também de sobrevivência global.

A opinião é livre, mas os factos são sagrados. Ao contrário das leis dos homens, as leis da natureza não podem ser quebradas. Se tudo é relativo, se não existe um Bem Universal desligado da retórica humana, então o canibalismo é uma mera questão de gosto culinário e o apedrejamento de mulheres uma questão de pontaria.

A sociedade tem que mudar de hábitos. Cabe-nos, também a nós cozinheiros, e todos os agentes envolvidos na produção alimentar, mudar e lembrarem-se do Grilo, o criado de Jacinto em “A Cidade e as Serras”, de Eça de Queirós – “sofrem de excesso de fartura”. Assim está parte da sociedade no Hemisfério Norte Ocidental. Temos de verificar os nossos recursos antes de aprovar os nossos desejos. É normal que nem todos estejam de acordo com as nossas convicções e opções. Haverá sempre quem nos critique.

A História é para aprender, o Futuro é para ser pensado e o Presente tem que ser para agir.

As divisões que se criam entre quem opta por tal ou tal regime alimentar fazem-me lembrar e citar uma frase do José Ortega Y Gasset no livro “A Rebelião das Massas”: 

“Ser de esquerda é como ser de direita, uma infinidade de maneiras que o homem pode escolher para ser um imbecil. Ambas, efectivamente, são formas de hemiplegia moral.”

A Natureza é a nossa fonte de vida, não é um recurso. Um assetcomo agora é de bem dizer! 

Como vê a evolução do jornalismo e da crítica gastronómica em Portugal nos últimos tempos?

Há pessoas sérias, importantes, dado o seu conhecimento e experiência, que sabem escrever, que sabem criticar. Não são a maioria. Há outras, porém, que não sabem nem uma coisa nem a outra. Num mundo perfeito a seleção far-se-ia naturalmente, mas a ânsia de se ser conhecido, influencer, ou de comer à borla, faz com que se tome o todo pela parte. Isso é grave e incorrecto.

E a pergunta da praxe: qual seria a sua última refeição se soubesse que o mundo acabaria amanhã?

Em extremos? Pão do monte, daquele mesmo tradicional, com caviar. 

Estranho? Experimentem e os blinis já eram.

Menos radical? Tom yam.

Baena num ensaio fotográfico mostrando a riqueza do mar de Sesimbra

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