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Vinhos chumbados, afectos, chamada de atenção, provocação ou marketing?

A história não é de hoje. Ao navegarmos pelas redes sociais não é raro depararmo-nos com a queixa deste ou daquele produtor, relacionada com a reprovação de um vinho pela comissão vitivinícola da sua região (vulgo CVR). O lamento assume o tom de indignação ou de sarcasmo e perante a situação há quem fique a remoer-se por dentro e há quem dotado de uma convicção inabalável sobre os predicados do seu vinho assuma o protesto e o atire cá para fora, escancarando-o no rótulo.

Um dos primeiros a fazê-lo foi o casal Jorgensen, da Cortes de Cima, que quando chegou à Vidigueira, em 1988, viu naquelas terras o clima ideal para plantar syrah, casta famosa do vale do Ródano, não autorizada no Alentejo na altura. Tal não os impediu de lançaram o primeiro vinho uma década depois, a que chamaram Incógnito. No contra-rótulo colocaram uma curta descrição em inglês acentuando as iniciais de cada frase que formavam, de forma muito pouco dissimulada, a palavra syrah. Juntaram-lhe ainda outra frase, de Bob Dylan, que dizia: “para viveres fora da lei, tens de ser honesto”. Tal como a história o resultado é bem conhecido. O Incógnito tornou-se um dos mais icónicos vinhos do Alentejo e a syrah não só passou a ser uma casta autorizada como é hoje a quinta mais plantada na região. Porém, os casos mais recentes, cujos testemunhos trazemos aqui, foram reprovados nas CVR por questões diferentes. Alegadamente por defeitos ou falta de tipicidade.

Na região da Bairrada, Mário Sérgio Nuno, da Quinta das Bágeiras, trabalha a vinha, produz, engarrafa e vende os vinhos feitos apenas com uvas próprias – algumas provenientes de parcelas com mais de 100 anos -, recorrendo a métodos tradicionais, como a apanha manual, pisa em lagar, utilização de leveduras autóctones e estágios em velhos tonéis de madeira. Carismático e respeitado, o bairradino é reconhecido por não atalhar caminhos, característica que se espelha no perfil dos seus vinhos: estruturados, muitas vezes austeros, longevos e reconhecíveis como um estilo da região. Por isso, quase sempre ostentam a designação máxima atribuída pela CVR, a DO (Denominação de Origem) Bairrada. 

“Quase sempre”, porque de quando em quando algumas das amostras que submete à certificação são reprovadas na prova sensorial. Quando acontece, ele não é de meias medidas, rotula-os apenas com o selo do IVV (Instituto da Vinha e do Vinho) e imprime no rótulo em letras bem visíveis a palavra “Chumbado”, que tanto pode ser nos seus vinhos de gama superior, Pai Abel ou Avô Fausto, como nos Colheitas de gama média, onde acabam por ser assumidos como marca. A primeira vez que o fez, deu logo que falar e ao longo dos anos a classificação acabou sendo vista mais como uma qualidade, com bons proveitos comerciais, do que como um estigma. No entanto, Mário Sérgio recusa que o seu acto seja visto como um oportunismo “marketeiro”.

“Com esta decisão, que tomei com o primeiro Pai Abel que fiz, em 2011, quis chamar à atenção das pessoas. Repare, em 31 anos que produzo vinhos, nunca tive um único Regional Beira ou Regional Atlântico, foram/são sempre Bairrada. No entanto, o que eu quero apelar é para não uniformizarem. Digo sempre isto: não estou à espera de que todas as pessoas ou que os provadores da CVR gostem do meu vinho. Eu quero é que eles tentem perceber que existem outras coisas para além daquilo que normalmente é mais pontuado ou mais consensual”. 

No Dão, para António Madeira, o protesto não é impresso no rótulo. Luso-descendente, deixou a vida de engenheiro em Paris e, em 2017, instalou-se de vez na terra de onde o seu pai partira, próximo da Serra da Estrela. Aqui, além de trabalhar os próprios vinhedos em modo biodinâmico, resgatou várias parcelas de vinhas velhas dispersas pela zona e começou a fazer o seu próprio vinho da forma menos interventiva possível – opção que ao contrário do que o termo possa dar a atender requer uma atenção redobrada, tanto na vinha como no processo de vinificação, dado o produtor evitar recorrer a uma panóplia de produtos enológicos. Com o orgulho de poder conceber os seus vinhos na denominação de origem (DO) de onde descende, António Madeira fez questão de estampar nos rótulos a designação “Dão”, com um destaque maior do que o seu nome, como é hábito nos vinhos franceses mais conceituados de regiões (ou suas sub-regiões), que muito aprecia. Porém, se os seus vinhos tintos ou as referências com mais tempo de estágio, como o Vinhas Velhas, chegam quase sempre a DO Dão, o mesmo não pode dizer dos brancos e rosés que pretende colocar mais cedo no mercado, que são reprovados frequentemente na análise sensorial, – quase sempre devido à cor e/ou falta de limpidez, o que impossibilita o uso do nome Dão. 

“O problema é sempre na prova sensorial”. Nestes casos concretos, diz não querer privilegiar um critério visual a um gustativo. “Para mim, o mais importante num vinho é que na boca dê realmente prazer, que estimule as papilas. Para fazer colagens e filtrações vai perder tudo isso, vai perder o que faz dele um grande vinho”.

Em relação à cor, António Madeira considera que “o amarelo mais carregado” do seu branco, pelo qual é penalizado pelos provadores da CVR, “é que é a verdadeira cor do vinho” e que os enólogos para terem um tom “mais aguado”, que responda ao critério de valorização pelo mercado massificado, usam “métodos muito interventivos que não só levam substâncias associadas à cor, como características que são muito boas a nível gustativo”.

No que diz respeito à limpidez, reconhece que o tempo de estágio resolve o problema – “é o que faço no Vinhas Velhas que fica dois anos antes de engarrafar”, mas que os vinhos que quer colocar no mercado no ano a seguir à colheita quando passam na prova “é mesmo à justa e muitas vezes não passam. Muitas vezes só por esse critério”.  

  • Um dos raros casos em Portugal em que o produtor faz questão, quando o deixam, de imprimir o nome da região com maior destaque do que o seu próprio

Figura badalada do sector do vinho português actual, António Maçanita tem disputas recorrentes com as CVR. Polémico e provocador, Maçanita é uma personagem inquieta que gosta de experimentar e que afirma que enquanto produtor está “tão próximo de aprofundar a nossa cultura e as castas locais como está em mudar o mundo com novos desafios”. Acontece que o resultado deste conceito esbarra com frequência nas regras das entidades reguladoras, nomeadamente nas da Comissão Vitivinícola do Alentejo (CVA), a principal região onde exerce actividade, através da Fitapreta Vinhos.

Maçanita diz ter um discurso aberto com a CVA e que por vezes sente-se motivado em manter o diálogo. Porém, outras vezes “só apetece é desbaratar”. Em 2016, perante mais uma reprovação resolveu manifestar o seu aziúme no rótulo de um vinho de talha a que deu o irónico nome de O Tinto do Pote de Barro. Junto com a ilustração de uma cadeira onde pousam umas orelhas de burro lê-se, como num castigo de escola: “Não volto a fazer Fina Flor. Não volto a fazer Branco de Tintas. Não volto a fazer branco de talha, não volto a fazer tinto de talha” (todos eles vinhos reprovados pela CVA, em algum momento). Como se não bastasse, na ficha técnica voltou à carga: “Não se pode chamar de Talha pois a comissão não deixa e não pode ser da região porque a comissão não gosta. Fica assim o nosso ensaio de castigo no canto da sala reduzido a um digno e humilde Pote de Barro, bem à imagem do vinho.”

António Maçanita acha que há “sobretudo uma ideia de gosto” por detrás destes chumbos. Os vinhos em questão, produzidos em quantidades reduzidas, apresentam normalmente um “perfil mais aberto do ponto de vista de aroma volátil”, bem como uma cor mais clara que afirma ser característica dos tintos que produz com uvas de vinhas velhas de castelão e tinta carvalha, duas castas tradicionais do Alentejo que perderam protagonismo ou estão mesmo afastadas do perfil da maior parte dos vinhos da região das últimas décadas.

Já do lado das CVR…

Se os casos e queixas dos produtores são mais conhecidos e têm tido atenção mediática, raramente se ouve o outro lado, o das comissões vitivinícolas regionais. Em Portugal existem 14 CVR, cada uma com a sua dinâmica e especificidade, mas com propósitos semelhantes: entre outros, o de controlar o cumprimento das regras e a certificação dos vinhos produzidos na sua região. São estas organizações constituídas pelos agentes económicos locais ligados ao sector (produtores, cooperativas, etc, que têm o poder de atribuir as certificações DO e IG, que permitem conter referências de envelhecimento, utilização de madeira, menções como Quinta, Casa, Herdade, Paço, Palácio ou Solar, referências aos nomes da DO ou IG ou menções tradicionais.

São os produtores que candidatam os seus vinhos às certificações podendo optar por não o fazer e engarrafá-los apenas com o selo do IVV. Neste caso, embora se exija igualmente uma série de preceitos, os critérios são mais abrangentes, o que faz com que caiba na designação um pouco de tudo, desde os casos de rebeldia relatados acima, bem como outros de produtores mais alternativos que não se identificam com as regras das comissões regionais, até a vendedores de vinho indiferenciado a granel. Além disso, quem se abriga nesta espécie de albergue espanhol, fica sujeito a poder colocar no rótulo pouco mais do que o ano de colheita e as castas.

Os vinhos enviados para certificação nas CVR, passam primeiro pela avaliação físico/química efectuada nos laboratórios das comissões, que são certificados por normas internacionais. Se em conformidade, seguem então para a câmara de provadores, que os analisa de acordo com o aspecto (limpidez, intensidade/tonalidade da cor), aroma (complexidade e intensidade) e sabor (complexidade, adstringência/amargor, corpo/estrutura, equilíbrio, fim de boca), dando no final uma apreciação global.  As amostras são anónimas e o provador apenas sabe o ano colheita, se é branco, tinto, rosé, etc e a casta, no caso de provar varietais.

É nesta prova sensorial que surgem a generalidade das queixas dos produtores. É que por mais que se apliquem metodologias e critérios objectivos, ou se treine um painel de provadores para serem “máquinas de detectar defeitos”, é impossível retirar a condição humana da equação – algo, que para alguns, nem é desejável que aconteça. E assim, factores como o gosto, a experiência individual, o critério de tipicidade, acabam, de uma forma ou outra, por influenciar. A questão da tipicidade, que não faz parte dos critérios das fichas de prova, é paradigmática. Na CVR Alentejo, a câmara de provadores é composta em exclusivo por técnicos internos “treinados para serem consistentes”, explica Fernando Mateus, presidente da comissão. Porém, ainda que não lhes seja pedido que se pronunciem sobre tipicidade, admite que havendo uma frequência de vinhos com determinados estilos, entre os 3500 que provam por ano, estes acabam “por ir modelando aquilo que é o mais frequente, logo o mais típico da região”.

Responsável de controlo e certificação na CVR Dão e, por inerência, coordenador da câmara de provadores (que no caso é constituída por técnicos internos e por enólogos dos produtores associados), Luís Fialho é mais categórico a este respeito. “É logico que a tipicidade também esteja presente na análise sensorial”, mas admite que “não é um item da ficha de prova actual”. No entanto, assegura: “mesmo que fosse poderia nunca ser esse item que iria fazer reprovar 100% um vinho”. Na verdade, mais ou menos, porque admite que “se aparecer para numa denominação DÃO, um 100% Cabernet Sauvignon, o vinho pode ser espectacular e reprova porque não é típico da região. Neste sentido, sim, a tipicidade pode ter influência”. E acrescenta ainda: “não é o mercado ou um produtor só porque diz que gosta muito deste meu vinho que ele tem de ter a DO. A Denominação de Origem é atribuída por uma entidade que trabalha de acordo com determinadas regras, que não caíram do céu aos trambolhões, foram sendo estabelecidas ao longo dos anos de maneira a serem mais próximas da realidade”. 

Para António Madeira o problema está aí, no actual modelo de DO, que considera um equívoco. “O papel das câmaras de provadores deveria ser o de garantir a autenticidade do produto”. Porém, refere, “hoje em dia, de certa forma, já não é viável, porque o modelo que estão capacitados para avaliar é o industrial. Já não tem nada a ver com o modelo DO. É um modelo estandardizado que é o mesmo, quer seja no Dão, no Douro, no Chile ou na Austrália. De certa forma, aquilo já não tem identidade. Qual é o produto que realmente tem identidade, é aquele que os aromas resultam da fermentação das leveduras que vieram de uma vinha daquela região ou é o produto em que mataste tudo e depois inoculaste com a levedura A não sei das quantas que compraste em Bordéus? É uma interferência muito grande no conceito de denominação de origem. É como estares a provar um queijo de um pastor ou um pasteurizado feito numa fábrica. Só conhecem o pasteurizado”, desabafa. 

Na CV Bairrada os provadores são cedidos pelas casas associadas, como é o caso de João Soares, das Caves Messias e do projecto V Puro (que faz com Nuno do Ó, os vinhos Outrora e Aliás). O enólogo é crítico do actual sistema que os treina para serem autênticos “cães de screening de defeitos” e, por isso, acha que se devem estabelecer critérios e pedir a cada provador somente “se aceita o vinho ou não, como pertencente a esta região”. Soares dá um exemplo: “os vinhos de Cornas, na Côtes du Rhone (França), têm sistematicamente acidezes voláteis altas e são magníficos! Ora bem, qualquer provador de lá sabe que por vias do seu PH elevado e da baixa acidez, estes têm essa tendência natural. Os vinhos não chumbam nem deixam de ser característicos por causa disso”. 

Segundo o enólogo, é o contrário do que se passa por cá, onde certos vinhos reprovam pela metodologia adoptada. “Porque têm um defeito identificável que o próprio produtor aceita e quer tê-lo, porque faz parte e se calhar até traz coisas positivas ao vinho. Só que a câmara de provadores, como é treinada para identificar e acusar esses erros, faz o seu trabalho e reprova”. João Soares é da opinião que seria mais simples, justo e menos restritivo “fazer provas sistemáticas com produtos da região incluindo abordagens novas que vão existindo e dizer-lhes que tudo o que estiver dentro deste perfil é para passar”. 

Já Luís Fialho, da CVR Dão mostra pouca abertura à ideia de que certas características consideradas como defeitos possam deixar de o ser. Um vinho turvo ou com uma ligeira acidez volátil detectada (mesmo dentro dos limites legais) será sempre um vinho com defeito que não pode passar. “O que são defeitos, são defeitos em todo lado. Colocar um vinho no mercado com um defeito é estar a contribuir para o mau nome da denominação”. E o que pensa em relação a casos como o de Cornas? “Se calhar isso está mensurado do ponto de ensaio físico-químico e está nas normas. Na nossa DO Dão não faz parte das características”. 

Os vinhos reprovados pelas CVR do Dão e do Alentejo andarão na casa dos 5% a 8% e, segundo Fernando Mateus, pelo menos na CVR Alentejo não nota que haja uma tendência que permita dizer que se reprovam mais vinhos hoje do que há 10 anos”. Mateus dá entender, também, que estas questões não são dogmáticas e que da parte deles estão sempre receptivos a ouvir. “O que pedimos aos produtores mais criativos é que venham cá e expliquem aos provadores, fora das sessões de prova, como é que o vinho foi feito e de onde vêm determinadas características, como é o caso de castas que dão menos cor, que não é frequente aparecerem e quando aparecem numa bateria de 6 ou 8 vinhos notam-se que são diferentes logo a olho nu. Isso acaba por contribuir para a formação dos provadores. Até agradecemos o façam”. 

Para terminar, voltamos a António Madeira para lhe perguntar porque insiste em enviar os seus vinhos para certificação, se eles, com ou sem a certificação DO, são apreciados e escolhidos pelos melhores sommeliers, em restaurantes estrelados por essa Europa fora? A resposta: “acho que qualquer produtor do mundo que tem uma ligação a um lugar, mesmo que diga que não, gostaria de ter a menção de denominação de origem. Sou luso-descendente, tive 40 anos em França e se vim para cá é porque tenho uma relação afectiva a esta zona, ao país. É quase como te dizerem que te retiram a nacionalidade. Ainda por cima é uma questão de verdade”.

Texto publicado originalmente na edição online do jornal Público – Fugas Especial Vinhos (uma versão mais curta foi publicada na versão em papel). Fotos retiradas dos sites/redes sociais dos produtores mencionados, com excepção da imagem do Incógnito, retirada da WineAnorak.com

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