Beber

Vem aí uma “revolução radical” nas cartas de vinhos? Andoni Luis Aduriz diz que sim

Sentamo-nos à mesa de um restaurante e, após termos escolhido o que vamos comer, entregam-nos uma extensa carta de vinhos, por vezes até na forma de livro, com centenas ou mesmo milhares de referências. Lá vamos fingindo algum interesse, espantamo-nos com os preços que algumas garrafas podem alcançar, mas na verdade já decidimos que quem vai mesmo escolher será o escanção, dentro de um intervalo de preços que nos pareça razoável. Ou, quando muito, lá optamos por algum vinho que nos seja mais familiar e ajustado às nossas posses. Creio que esta situação, que já vivi várias vezes em restaurantes galardoados pela excelência das suas caves, é comum a muita gente. Talvez por isso, o título de uma entrevista recente da revista gastronómica digital espanhola 7 Canibales ao chefe basco Andoni Luis Aduriz – “Não tem sentido que o Mugaritz tenha carta de vinhos” – despertou-me a atenção e levou-me a perguntar a dois chefes portugueses de restaurantes também com duas estrelas Michelin (tal como o Mugaritz), Rui Paula e José Avillez, bem como ao escanção Marc Pinto, do restaurante Fifty Seconds, em Lisboa, que integra o grupo de outro chefe basco, Martín Berasategui, o que pensam sobre esta questão.

Antes de mais, convém ler o que diz Aduriz, numa tradução pela qual peço desde já desculpa: 

Pensei que no Mugaritz sempre faltou uma revolução, que agora começámos a pôr em marcha, que é a revolução na carta de vinhos. Não tem sentido que um restaurante como o Mugaritz, que não tem carta de comida, tenha carta de vinhos. Não me interessa a carta de vinhos; não me interessam as cartas de nada. Já tenho as pessoas dos vinhos do Mugaritz a trabalhar com a equipa de criatividade no que vamos propor para este ano. O que quero que aconteça num futuro próximo é que quando chegares ao Mugaritz te seja apresentado um menu completo e fechado, respeitando, é claro, as intolerâncias. Não quero ter uma cave com oito mil referências. Quero ter 60 coisas especiais, sobre as quais tenhamos trabalhado e conceptualizado, que só se podem beber no Mugaritz. Temos que dar mais esse passo na direcção da radicalidade”.

Andoni Luis Aduriz (Foto: Alex Iturralde)

O primeiro com quem falei foi Rui Paula, que, segundo me disse, tem cerca de um milhão de euros investidos nos vinhos dos seus três restaurantes – Casa de Chá da Boa Nova, DOP e DOC. No primeiro, em Leça da Palmeira, que detém duas estrelas Michelin, a carta de vinhos conta com aproximadamente 600 referências. “E já foram bem mais, quando abrimos há sete anos”, garante-me o chefe. “Temos vindo a reduzir e vamos continuar nesse caminho, porque realmente há certos vinhos que não fazem sentido termos na carta, por muito bons e prestigiados que sejam”. No entanto, o chefe portuense-duriense não partilha da “radicalidade” de Aduriz: “A nossa escolha tem que ser criteriosa e ir de encontro aquilo que os nossos clientes pedem. Na Casa de Chá, servimos muito peixe e mariscos, e, por isso, somos muito fortes nos vinhos brancos. Mas a verdade é que temos muitos clientes que preferem acompanhá-los com tintos, logo temos que os ter na carta. E temos também clientes para champagnes e vinhos franceses. Ou seja, não podemos reduzir a oferta a 60 ou 100 referências e temos que a adequar ao que os clientes pedem”. Para acabar, será que extensas cartas de vinhos, com rótulos prestigiados, são essenciais para impressionar os inspectores Michelin? Rui Paula acha que não. “A Michelin não quer saber disso, quer saber é de comida e serviço”, assegura.

Quanto a José Avillez, começa por realçar o carácter excepcional do Mugaritz e do seu chefe. “O Andoni Aduriz é um dos últimos génios do mundo da cozinha e está-se a borrifar para guias e estrelas. Tem a coragem dos artistas, só quer fazer o seu caminho. O Mugaritz é um dos grandes restaurantes conceptuais que restam e quem lá vai sabe que terá uma experiência totalmente diferente, vai ficar totalmente nas mãos do chefe”. Por isso, considera o chefe do Belcanto, não é de espantar que Aduriz queira estender essa característica experimental ao mundo dos vinhos. O que não quer dizer que outros restaurantes de topo possam ver nessa “revolução” na carta dos vinhos um exemplo a seguir. 

Além desse carácter específico do Mugaritz, José Avillez também salienta o facto do restaurante não estar no centro de uma grande cidade – está no meio do campo, a cerca de 20 minutos de San Sebastián – e não ter serviço à carta. “No Belcanto, sobretudo ao almoço, temos clientes que pedem à carta, e outros que vão lá de 15 em 15 dias. Julgo que esses clientes preferem escolher o vinho e, por vezes, são capazes de gastar 300, 400 ou 600 euros numa garrafa e não num menu mais extenso”, explica. Assim, embora ter uma grande cave represente um investimento avultado, não faria sentido reduzir as centenas de referências de vinho do Belcanto para 60 ou 100, diminuindo as opções dos clientes que não gostam que lhes digam o que vão beber. Quanto ao impacto sobre as avaliações da Michelin, José Avillez não tem a mesma opinião de Rui Paula. “Acho que eles gostam de ver restaurantes com muitos vinhos, muitas opções de prestígio, consideram que os clientes valorizam isso”, conclui.

Marc Pinto tem 850 referências na carta de vinhos do Fifty Seconds (Foto: Miguel Pires)

Palavra final para Marc Pinto, escanção do Fifty Seconds, restaurante com uma estrela Michelin que dispõe de uma carta de vinhos com 850 referências e cinco mil garrafas. Uma aposta que está de acordo com a visão de Martín Berasategui, chefe basco do grupo em que o Fifty Seconds está integrado, o qual, segundo Marc Pinto, no seu restaurante original nos arredores de San Sebastián dispõe de 30 mil garrafas numa cave com 120 m2. “Nós aqui seguimos mais esse modelo clássico, de origem francesa, da grande cave com grandes vinhos, mas não discordo que restaurantes como o Mugaritz tenham uma visão diferente. Parece-me também que tem a ver com o momento difícil que a restauração atravessa com a pandemia, porque ter muito dinheiro imobilizado em vinho – mesmo que certas marcas se possam valorizar com o tempo – numa altura em que ele pode fazer falta noutras áreas mais urgentes, representa um grande investimento”, afirma o vencedor do Prémio Especial S. Pellegrino/Acqua Panna Escanção do Ano2020 do Mesa Marcada.

Ao Fifty Seconds, segundo ele, vão muitos clientes que gostam de fazer as suas próprias opções vínicas ou que pelo menos gostam de encontrar na carta de vinhos rótulos que fiquem situados na sua “zona de conforto”. “Às vezes, apesar de serem bons vinhos, acho que alguns deles nem deveriam estar na nossa carta, mas não há dúvida que têm saída, que são um porto seguro para vários clientes e nós gostamos que as pessoas se sintam à vontade quando vêm ao restaurante, não queremos ser impositivos”, sublinha. Mas, como profissional, Marc Pinto acha interessante o desafio lançado na entrevista por Andoni Luis Aduriz. “Trabalhar num restaurante com oito mil referências requer um perfil de escanção completamente diferente – muito mais ligado à gestão de stocks, por exemplo – do de quem vai selecionar 60 vinhos especiais, mas são ambas interessantes em termos profissionais. De alguma maneira, a opção do Mugaritz reforça ainda mais a responsabilidade de quem vai fazer a carta de vinhos, já que deixa pouca escolha ao cliente”, conclui.

Foto de abertura: A extraordinária cave de vinhos do restaurante Coque, em Madrid, duas estrelas Michelin

Nasceu em Lisboa em 1963. Licenciou-se em Comunicação Social pela Universidade Nova de Lisboa e trabalhou em diversos jornais (Semanário, Diário Popular e Diário de Lisboa) e, depois, na área de comunicação empresarial. Em 1997, começou a colaborar com a revista “Fortuna” na área de gastronomia e vinhos. Em 1999, criou a página “Boa Vida” para o “Diário de Notícias”, que coordenou até Janeiro de 2009, com algumas interrupções. Entre 2007 e 2019, foi coordenador do Projecto Gastronomia da Associação de Turismo de Lisboa e, nesse âmbito, director do festival gastronómico Peixe em Lisboa, continuando a escrever artigos sobre gastronomia e restaurantes em várias publicações.

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