Tenho uma teoria — ainda sem comprovação científica, baseada somente em poucas experiências empíricas — que é nas ilhas que se encontram as culinárias mais autênticas, aquelas mais preservadas nesse mundo com tanta ânsia de globalização.
Pela limitação logística que por vezes as aparta do mundo continental, seus moradores seguem (quase sempre) fazendo aquilo que sempre fizeram, comendo da mesma forma que sempre comeram, alheios às influências que mudam como seus climas inconstantes. Malta, Islândia, Hawai, Faroe, Cabo Verde, Galápagos, Madeira…
Foi para essa última que fugimos no final de semana passado em busca de algum senso de normalidade nesses tempos de mais um restritivo lockdown. Na Ilha da Madeira, onde a Primavera tira férias, a pandemia se fez mais branda. Em um voo curto, chegámos a esse paraíso tropical no meio do Atlântico onde a vida ainda caminha, a despeito do vírus — mas não, claro, das máscaras.
Fomos a restaurantes (onde pude sentir de novo, depois de semanas, a mágica que é sentar-se em um e escutar o burburinho das mesas em volta, ainda que agora mais distantes), mas tivemos as refeições mais inesquecíveis nas casas de madeirenses que abriram as portas e suas receitas para nós.

No sábado pela manhã, estivemos com a Senhora Maria na Quinta Pedagógica dos Prazeres, que passou mais de 15 anos na África do Sul antes de regressar à sua Madeira natal. “Não troco isso aqui por nada”, diz ela, com sotaque arrastado, enquanto cozinha batata-doce para o Pão de Casa, o pão popular que leva o tubérculo na receita.
Senhora Maria dissolve as batatas na água quente com carinhosos beliscões nas pontas dos dedos, que depois mistura tudo à farinha feita com trigo da região, parte dela peneirada e outra parte mais rústica, com o “rolão”, como diz, o farelo mais grosso que os madeirenses também usam como ração dos animais.
Ela amassa o volume disforme com força e destreza no alguidar, seguindo as tais dobras que os “neopadeiros” exibem em seus perfis no Instagram como se tivessem descoberto uma grande novidade. A Senhora Maria, aos 65 anos, padeira caseira experiente, nos diz que “às 3 da tarde ele estará levedado, e então já coloco no forno para provarmos”. Antes de sairmos, ela cobre a massa com mantas como se colocasse um bebé para tirar uma soneca, o qual despertaremos mais tarde com nossa fome.
De lá, vamos à casa do Seu Élvio, onde entramos pela porta da sala até alcançar sua cozinha ampla, onde ele está mergulhando suas famosas malassadas no óleo quente, de onde elas saem harmoniosamente redondas e douradas como se numa linha de montagem.
Sobre a bancada de pedra, um exército de malassadas descansam sobre o papel toalha para ficarem ainda mais sequinhas. Macias e esponjosas, elas têm uma textura entre o donut e o mochi: densas, mas flexíveis. São um clássico em tempos de Carnaval na Madeira e as do Seu Élvio estão entre as mais populares de toda a Ilha. Ele derrama um pouco de mel de cana por cima e dá o sinal com a cabeça para avançarmos.
Parecem um pouco um bolinho de chuva, mas com a massa ainda mais fofa. O aguaceiro que desde a madrugada não tinha dado trégua ajuda no clima de nostalgia, quando eu devorava bolinhos semelhantes que minha mãe fazia para as tardes após a escola. Orgulhoso, seu Élvio enche um saco plástico com as bolinhas bronzeadas para levarmos, como quem entrega com brandura uma quentinha. “Para comerem no caminho”, sorri.
Levamos mais de 30 minutos para chegar a um dos extremos da Ilha para provar uma das mais famosas especialidade local, que só entrou no nosso roteiro por uma adaptação de itinerário — os bons imprevistos que nos lembram da beleza da imprevisibilidade, sobretudo nesses tempos cascudos.
As Queijadas da Madeira são diferentes de todos os tipos de queijadas que eu já provei — e olha que foram muitas. Delicadas no sabor, leves na textura, quase nada doces. Pelo menos as que faz o João, dono de uma pequena fábrica caseira de lacticínios que funciona na parte debaixo da sua casa, em Alta Gaula.
Ao explicar a receita, que leva 70% do excelente requeijão (uma espécie de queijo frescal no Brasil) que ele mesmo produz mais muitos ovos e açúcar, João repete algumas vezes que “não é nada de especial”, algo que qualquer um que tem a chance de provar a sua queijada o contradiz veementemente.
Ela desmancha na boca e cria sobre a língua uma deliciosa nuvem de leite e gordura levemente doce, um tipo de gosto que nos é muito conhecido desde a primeira infância, mas aqui muito mais equilibrado, “adulto”, com uma leve acidez láctea que amarra e limpa, para depois nos jogar de novo no sabor meloso para recomeçar todo o ciclo…
Para nos deixar provar sua queijada, ele monta a mesa, verte a ginja da Madeira em pequenas taças, corta o requeijão em quadradinhos milimétricos, serve o mel de cana. “Não querem mais nada?”, pergunta, atencioso. Quando as queijadas saíram do forno, ainda quentes, João as colocou em uma embalagem de isopor (esferovite), ignorando minha vontade de devorar um logo ali. Ele sabe que há sempre o momento certo para cada coisa.
Não tenho ideia do quanto dessa hospitalidade, dessa ternura em receber, pode de facto alterar o sabor das coisas na nossa percepção. Cientistas do comportamento já têm pesquisado esta resposta. Mas fazia tempo que eu não comia algo que me deixasse tão mexido como tudo aquilo que provei na casa dessas pessoas tão amáveis que nos receberam neste final de semana na Madeira.
Uma grata constatação para mim (que ultimamente ando isolado como um arquipélago) de como o acto de sentarmos juntos para comer, degustar e confraternizar é o verdadeiro condimento das boas refeições. É socialmente que o acto de comer tem sua melhor representação. Obrigado Madeira, por me lembrar que nenhum homem é uma ilha.
Crónica (e fotos) de Rafael Tonon publicada originalmente na sua newsletter Ao Ponto, (que pode ser subscrita, aqui)
Bonito exemplo, viajar em tempos de pandemia.
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