Opinião

“Terrorismo do Sushi” – como chegámos até aqui?

Conheço muita gente que frequenta restaurantes por tudo menos comida. Vão para matar a fome, encontrar os amigos, ver gente bonita e ambiente, idem. Não correm atrás do que acabou de abrir, não têm o mínimo interesse em comer nada fora do comum e detestam explicações sobre o processo ou procedência dos ingredientes. Qualquer coisa gostosa que ocupe o vazio do estômago e não atrapalhe a conversa, “tá valendo!”.

Isso não é de hoje. Desde que surgiram as primeiras confeitarias ou casas de pasto (precursoras dos restaurantes), o tal “ver e ser visto” já importava, assim como valia investir na decoração, se instalar diante de uma bela paisagem ou, mais tarde, contratar piano e orquestra. 

Não vai aqui, portanto, nenhum juízo de valor. Se engana quem acha que restaurantes são só comida. Eu sei… esse choque de realidade enlouquece quem vive atrás de bons pratos e se revolta com lugares lotados, de qualidade medíocre. Talvez eu também seja uma romântica. Talvez também me irrite com tudo isso.

Logo que o Instagram começou a fazer sucesso, percebi o aumento da importância da estética sobre o conteúdo. A foto se tornou um novo produto com valor de revenda, mais um item no menu. 

Não só os ambientes viraram cenários “instagramáveis”, como também houve a revolta do prato, que antes queria ser só gostoso, mas dali por diante pensou que valia a pena ser obra de arte, ainda que nem sempre saborosa. 

Pois é, depois da montagem milimétrica de folhinhas, pozinhos, molhinhos, o prato por vezes tem de enfrentar o discurso interminável de explicações sobre o processo. Depois de tanto desvio de foco para cuidar do que se propaga nas redes, já vi muita comida fria, carnes duras e ingredientes mortos ao chegar.

Hoje, chefs são julgados pela vocação midiática, aparência ou oratória; garçons são julgados pela performance; pessoas são elogiadas por chegar primeiro numa inauguração e fotografar antes; e a comida é só aquela bolinha de luz lá no fim desse imenso túnel de coisas. 

Esta semana, me deparo com uma notícia pavorosa: a polícia japonesa está atrás dos “terroristas de sushi”, gente que se filma lambendo os dedos e passando nos sushis que circulam naquelas esteiras giratórias ou deixando um tanto de saliva na tampa do molho shoyu que será usado por outros clientes, entre outras atrocidades. 

Como diabos chegamos até aqui?

Restaurantes, agora, são mais palco que nunca, um cenário que sofre a interferência de quem o usa. 

Criar um prato bom pode ser menos importante do que oferecê-lo a alguém com muita visibilidade na mídia. Ter boa conexão de wi-fi pode ser mais importante do que tudo. Conversar com o companheiro de mesa pode ser menos importante do que falar com um terceiro, pelo telemóvel. Servir comida quente pode ser menos importante do que esperar os clientes tirarem várias fotos. Ter um chef bonito e midiático pode ser menos importante do que ter outro, tímido, que cozinhe melhor. A música que alguém escolheu para acompanhar um vídeo de restaurante pode mudar a percepção do ambiente. Por fim, ir a um sushibar só pela vontade de criar uma “trend” com milhões de visualizações pode ser mais importante que a comida, a saúde pública ou a ética. 

Talvez devamos rever categorias, nos prêmios: “melhor comida, com ambiente mais ou menos”; “chef mais bonito que cozinha mal”; “prato horrível com mais curtidas no Instagram”; “menor explicação de prato”; “melhor corredor para filmar a entrada esvoaçante”; “melhor restaurante para fazer dancinha no TikTok”; ou “o prato delicioso mais feio que existe”. Sei lá, pode ser útil para muita gente.

Só sei que, quando a comida morrer de vez e o enterro virar post, não vai levar minha curtida. 

Leia também:

. O Fame e a autenticidade de uma cozinha italiana que não existe

. Maria de Lourdes Modesto: a importância de ser útil

. Vieiras, vómito e luta de classes 

. Para que nos serve uma Gala Michelin?

19 comments on ““Terrorismo do Sushi” – como chegámos até aqui?

  1. Em verdade, o chefs são julgados pelo número de tatuagens.

    Liked by 1 person

  2. Gustavo Portela

    Brilhante e sensível dissertação sobre o mundo superficial e muitas vezes falso que as mídias sociais impõe à humanidade . E, pior, de como ela se submete a isso.

    Liked by 1 person

  3. Apoiado!

    Gostar

  4. Manuel Francisco Ramalho Pereira

    Eu não como fora de casa…por várias razões. Em casa e super saudável e acolhedor.

    Gostar

  5. Fernanda Silva

    Para não falar dos clientes que são exibidas críticos culinários e se acham no direito de dar palpite ao chef de como se faz o que o chef estudou anos para fazer, ou que só vai para provar que a comida é má, e, daí surpreso com a qualidade dos pratos servidos. Tenho um restaurante brasileiro aqui em Lisboa e já ouvi pérolas que daria livros.
    Seu texto é maravilhoso!
    Sou sua fã.

    Gostar

  6. Obrigada pelo carinho, Fernanda!

    Gostar

  7. carlosr1be1ro

    Deliciosa leitura.

    Original, ousado, sincero, repleto de verdades.

    Artigo primoroso, e que se eu tivesse um restaurante, de certeza este “poema” em sua totalidade, estaria na primeira página da carta, ou para alguns, do menu.

    Cozinhar, atender o público, respeitar o próximo, descrever com maestria momentos, situações, pontualidade ou generalidades, são obras de arte, e que aprecio, ou melhor, que devemos apreciar imenso.

    Parabéns, sequer consegue traduzir a gratidão ao decorrer pelas linhas e palavras são deixadas, sendo assim e sem palavras para terminar.

    Desejo todo o sucesso possível e que abençoada sejam as pessoas que te conhecem e bebem de sua maestria.

    Liked by 1 person

  8. Arley Moreira

    Cristiana, muito bem colocado suas palavras, sou Chef de cozinha e realmente de tempos pra cá vemos muito o segmento gastronómico perdendo sua naturalidade, por isso que escolhi a culinária afetiva, para trabalhar,onde se recorda de bons momentos ou cria-se bom momentos com aquele prato, as típicas comidas da Vó, a culinária tradicional portuguesa, tanto quanto a brasileira, tem muito disto, precisa- se explorar mais, ouvir e experienciar as gerações antes de nós.

    Liked by 1 person

  9. José Manuel

    A objetividade que usa na análise que faz, é do melhor que já li, na denúncia das superficialidades em que estamos mergulhados.

    Liked by 1 person

  10. José Ruivo

    Adoro comer nos sítios onde a comida é boa e o pessoal simpático. Não são muitos e não têm estrelas Michelin. Acho que são mais Firestone, tipo bife na pedra…

    Gostar

Deixe uma Resposta

Preencha os seus detalhes abaixo ou clique num ícone para iniciar sessão:

Logótipo da WordPress.com

Está a comentar usando a sua conta WordPress.com Terminar Sessão /  Alterar )

Imagem do Twitter

Está a comentar usando a sua conta Twitter Terminar Sessão /  Alterar )

Facebook photo

Está a comentar usando a sua conta Facebook Terminar Sessão /  Alterar )

Connecting to %s

%d bloggers gostam disto: