As Galas são hoje uma boa fonte de receitas para os guias Michelin e não há nada de errado com isso. Desde o êxito da primeira, em finais de 2009, pioneira a nível mundial, relativa à edição de 2010 (data do centenário do guia Michelin Espanha & Portugal), que decorreu no então renovado mercado de San Miguel, em Madrid, todos os anos há muitas cidades espanholas que querem receber o anúncio das estrelas ibéricas e estão dispostas a pagar bem pelo privilégio. Quando, para o ano, este evento apenas se restringir aos restaurantes espanhóis – já que, segundo foi anunciado em Toledo, na semana passada, na Gala relativa a 2023, Portugal passará a ter uma Gala própria em 2024 – este interesse das cidades do país vizinho não deverá diminuir. Mas certamente que a Michelin acrescentará os rendimentos obtidos na Gala portuguesa aos seus proventos, o que é bom, porque se trata de uma empresa privada, que deve gerar lucros, quanto mais não seja para que os inspectores continuem a fazer o seu trabalho o melhor possível, com a independência que se lhe reconhece, sobretudo num tempo em que os guias impressos, que quase já ninguém compra, deixaram de representar uma receita significativa.
Esta parece-me a principal razão – legítima, repito – da Michelin para desdobrar a Gala ibérica. Mas será que isto significa, como alardeia a comunicação oficial do guia, um reconhecimento da importância dos nossos restaurantes, da nossa gastronomia? Poderá ser, mas duvido. Entre a “delegação” portuguesa que esteve em Toledo, brincava-se que, em vez das fastidiosas mais de três horas que durou esta Gala de 2023, a Gala portuguesa apenas demorará uma meia-hora, tempo mais do que suficiente para celebrar as cinco novas estrelas com que a nossa restauração tem sido brindada nos dois últimos anos.
Será então que, no primeiro trimestre de 2024, para quando está prevista a primeira Gala portuguesa, vamos ter finalmente uma chuva de estrelas, incluindo um ou mais com três estrelas? Será que a Michelin está a guardar-se para fazer bonito na estreia em Portugal? Gostaria muito que assim fosse, mas mais uma vez tenho as minhas dúvidas, porque isto de guardar estrelas na gaveta não seria lá muito coerente com os princípios que o guia proclama. Logo veremos como a Michelin vai preencher a Gala portuguesa, mas apostaria mais em inúmeras chamadas ao palco de quem já tem estrela, prémios especiais, bib gourmands, estrelas verdes…e, é claro, vários discursos de representantes de entidades oficiais e patrocinadores ou, quiçá, números musicais como em Toledo…
Alguns elementos da “delegação” portuguesa na Gala de Toledo, a última de âmbito ibérico
Com isto não quero dizer que considero negativa a autonomização da Gala portuguesa, embora haja um aspecto em que me reconheço nas palavras de Ricardo Costa, chefe duas estrelas do Yeatman, que em Toledo foi encarregue de entregar as nossas novas estrelas. Quando a apresentadora lhe perguntou o que achava de Portugal ter uma Gala própria, em vez da resposta esperada, cheia de orgulho pátrio, respondeu algo como — “Vamos ver como vai ser, mas tenho pena de perder esta ocasião de convívio com os amigos espanhóis” — o que despertou risos e aplausos na plateia.
Mas, voltando à parte positiva de ter uma Gala portuguesa, parece-me que, de facto, os nossos estrelados poderão estar mais visíveis internacionalmente e não dissolvidos na avalanche de estrelas com que os espanhóis são, muito justamente, premiados anualmente. A este propósito, diga-se de passagem, que comparações populacionais entre Portugal e Espanha para explicar uma eventual injustiça da Michelin em relação aos nossos restaurantes não serão lá muito adequadas. Mais do que quantitativa, a razão é qualitativa. Desde a segunda metade dos anos 90, a Espanha, por mérito próprio, transformou-se numa potência gastronómica de nível mundial, só comparável a países como França, Itália ou Japão. É certo que em Portugal o caminho nos últimos anos tem sido muito positivo, mas é claro que, tal como acontece com muitos outros países europeus, incluindo alguns da dimensão de Espanha, é pura ilusão achar que podemos ombrear com os espanhóis nesse domínio. Vamos aprender com eles, até porque acho que a grande maioria dos chefes espanhóis nos tem simpatia, tirar proveito da proximidade geográfica e olhar em frente, para o caminho que temos que percorrer, em vez de estar sempre a olhar para o lado.
Voltando à Gala portuguesa, o ponto que considero mais positivo é que talvez se recupere algum do mistério e charme que tinha antigamente o anúncio anual das estrelas. Actualmente, ao saber quem foi ou não convidado para a Gala, ficamos logo com uma ideia de quem vai ou não receber estrela. Normalmente, quem não tem nenhuma estrela e é convidado quase de certeza que a vai ganhar. Há excepções recentes, é certo, como foram no ano passado os casos de Rodrigo Castelo (Ó Balcão, Santarém) e Angélica Salvador (IN Diferente, Porto), que pensaram ir ganhar estrela quando foram convidados para a Gala em Valencia e se ficaram por Bib Gourmand. Não conheço o restaurante portuense, mas o Ó Balcão, depois da reformulação realizada no ano passado, está muito nitidamente para uma estrela e dificilmente entra nos critérios Bib Gourmand de refeições a preço acessível, que faziam mais sentido quando ainda se intitulava Taberna. Tomara que na Gala portuguesa se corrija essa e outras injustiças. Algo, no entanto, é seguro, mesmo entre quem já tem estrela e espera pela segunda ou pela terceira. Se não for convidado, não vai ganhar, porque a Michelin quer chefes no palco da Gala para tirar fotografias e potenciar o efeito mediático do investimento que faz nestes eventos.
Os três estrelas espanhóis posam para a fotografia, com Quique Dacosta a aproveitar para mais uma selfie
Ora, no caso da Gala portuguesa, acho que vai ser diferente. Parece-me que, para encher a plateia, vão ter que convidar muitos chefes, tenham ou não estrela, tenham ou não possibilidade de ganhar. Voltamos assim ao suspense, ao mistério, à incerteza dos tempos antigos de que tantos são nostálgicos (bem, pelo menos, eu sou…) quando os chefes nunca sabiam bem o que lhes ia acontecer nessa noite. Oxalá os organizadores da nossa Gala tirem partido dessas condições e não a transformem simplesmente numa cópia ainda mais maçadora da congénere espanhola.
Tenho ainda uma esperança, muito vaga, de que a Gala portuguesa possa implicar numa maior atenção aos nossos restaurantes, ou seja, que os inspectores tenham mais tempo para visitá-los, não só os estrelados, mas também todos os outros que poderão estar referidos/recomendados no guia e que são muito mais procurados pelo comum dos turistas do que os de topo. É claro que a “langue de bois” que os responsáveis pelo guia praticam publicamente garante que nos dão toda a atenção, que não têm falta de inspectores, que acompanham perfeitamente as enormes mudanças que o aumento do turismo veio trazer a Portugal nos últimos tempos, mas basta verificar os restaurantes que não estão incluídos no guia português para percebermos que não é assim que as coisas se passam, embora seja verdade que a desactualização do guia em relação à nossa realidade já tenha sido bastante pior.
Creio que a equipa de inspectores para os restaurantes ibéricos continua a ser de cerca de 12 elementos, os mesmos que eram há quase vinte anos, quando entrevistei para o Diário de Notícias o chefe dos inspectores da altura. Veja-se agora a quantidade de novos projectos de qualidade que surgiram nos dois países desde esse tempo e percebe-se que é impossível que vão muito além do que já fazem, mesmo sabendo que o guia para o Rio de Janeiro e São Paulo (que era também coberto pela equipa ibérica) foi suspenso por tempo indeterminado e que há inspectores que vêm de outros países, embora, provavelmente, mais para confirmar estrelas do que para descobrir bibs gourmand. Ou seja, mais do que galas, o verdadeiro reconhecimento que a nossa gastronomia poderia ter era mais inspectores e visitarem mais restaurantes em Portugal, viessem de onde viessem, fossem de que nacionalidade fossem.
Ricardo Costa entregou uma merecidíssima estrela a Paulo Morais
Uma palavra final para os resultados dos restaurantes portugueses. Em primeiro lugar, o facto de nenhum restaurante ter perdido, após o período dificílimo que viveram nos últimos dois anos por causa da pandemia, é de destacar e louvar. Depois, uma enorme satisfação com a inesperada estrela para o Kanazawa, de Paulo Morais, um dos chefes mais trabalhadores e discretos que conheço (comecei a acompanhar o seu trabalho no final dos anos 90, quando ele estava no Midori, no hotel da Penha Longa), cujo profissionalismo e competência pude testemunhar de perto, já que teve restaurante em quase todos os Peixe em Lisboa. Era sempre dos primeiros a chegar, tivesse saído à hora que fosse no dia anterior, e cuidava de tudo pessoalmente, concentrado em fazer o melhor possível para os seus clientes. Aos 51 anos, é um exemplo de como pode compensar persistir num caminho em que se acredita. Falei agora com Paulo Morais ao telefone, porque logo depois da Gala ele foi embora, não ficando para os “comes e bebes” que se seguiram (e que terão sido do piorzinho que já vi e eu estive em todas as galas, menos na do ano passado, por causa da pandemia).
“Na realidade, quando fui convidado para a Gala pela Michelin, achei que deveria ser para um Bib Gourmand, como tinha acontecido ao Rodrigo Castelo no ano passado. Mas depois as pessoas com quem fui falando explicaram-me que os preços do Kanazawa não tinham nada a ver com os de um Bib Gourmand, mas mesmo assim preferi não dar nada como adquirido para depois não ter desilusões”, conta Paulo Morais, que mostra bem como o injusto Bib Gourmand para o Ó Balcão, que se mantém paradoxalmente este ano, foi traumático e desorientador para muitos chefes portugueses, a começar, evidentemente, por Rodrigo Castelo.
Paulo Morais explica ainda a sua surpresa em receber a estrela nesta altura. “Quando o Tomo [o chefe japonês Tomoaki Kanazawa, que fundou o restaurante] decidiu ir para o Japão em 2017 e deixar-me o Kanazawa, eu sabia que ele tinha esperança de ganhar uma estrela. E eu acho que isso aconteceria rapidamente se ele tivesse ficado. Nos dois anos seguintes ainda pensei no assunto, mas não vi nenhum sinal de interesse da parte da Michelin e achei que não haveria hipótese. Só neste ano é que eles puseram o restaurante no guia online e fiquei satisfeito, mas não pensei que teria em estrela”, afirma. E a verdade é que já está a ter efeitos. Antes da estrela, para jantar num dos oito lugares ao balcão no Kanazawa era preciso uma antecedência de duas/três semanas. Agora, os pedidos de reserva aumentaram consideravelmente e a espera já vai para mais de um mês. No entanto, como o restaurante também está a abrir para o almoço, há hipótese de conseguir reserva mais rapidamente nesse horário.
Os cinco distinguidos em Portugal em 2023, da esquerda. para a direita, Julien Montbabut, Paulo Morais, Diogo Formigo, Vasco Coelho Santos e Paulo Alves
Ainda sobre os novos estrelados portugueses, grande satisfação também com o reconhecimento do Euskalduna, de Vasco Coelho Santos, que, como dizia o outro, “só pecou por tardia”, e pelo rápido êxito do Encanto, mostrando que José Avillez continua a ter uma influência ímpar na cozinha portuguesa e que possibilita o surgimento de novos valores, como Diogo Formigo, chefe do restaurante agora estrelado. Quanto ao Le Monument, de Julien Montbabut, só me lembro de ter lá estado há um bom par de anos, logo depois da abertura, e de ter encontrado uma cozinha que se adivinhava superior no conceito, mas que sofria de bastante irregularidade na execução. O chefe francês tinha chegado há pouco tempo e ainda não tinha a equipa que queria, explicaram-me. Pelos vistos, é mais uma prova de que a persistência compensa e um exemplo para muito boa gente na restauração portuguesa que pensa que basta ter um chefe “mediático” para ter estrela. Finalmente, o Kabuki, de Paulo Alves, outra prova de que compensa apostar em boas equipas para bons projectos. E de que o peixe das nossas costas, quando bem tratado, é uma estrela que brilha a grande altura.
As Galas são hoje uma boa fonte de receitas para os guias Michelin e não há nada de errado com isso. Desde o êxito da primeira, em finais de 2009, pioneira a nível mundial, relativa à edição de 2010 (data do centenário do guia Michelin Espanha & Portugal), que decorreu no então renovado mercado de San Miguel, em Madrid, todos os anos há muitas cidades espanholas que querem receber o anúncio das estrelas ibéricas e estão dispostas a pagar bem pelo privilégio. Quando, para o ano, este evento apenas se restringir aos restaurantes espanhóis – já que, segundo foi anunciado em Toledo, na semana passada, na Gala relativa a 2023, Portugal passará a ter uma Gala própria em 2024 – este interesse das cidades do país vizinho não deverá diminuir. Mas certamente que a Michelin acrescentará os rendimentos obtidos na Gala portuguesa aos seus proventos, o que é bom, porque se trata de uma empresa privada, que deve gerar lucros, quanto mais não seja para que os inspectores continuem a fazer o seu trabalho o melhor possível, com a independência que se lhe reconhece, sobretudo num tempo em que os guias impressos, que quase já ninguém compra, deixaram de representar uma receita significativa.
Esta parece-me a principal razão – legítima, repito – da Michelin para desdobrar a Gala ibérica. Mas será que isto significa, como alardeia a comunicação oficial do guia, um reconhecimento da importância dos nossos restaurantes, da nossa gastronomia? Poderá ser, mas duvido. Entre a “delegação” portuguesa que esteve em Toledo, brincava-se que, em vez das fastidiosas mais de três horas que durou esta Gala de 2023, a Gala portuguesa apenas demorará uma meia-hora, tempo mais do que suficiente para celebrar as cinco novas estrelas com que a nossa restauração tem sido brindada nos dois últimos anos.
Será então que, no primeiro trimestre de 2024, para quando está prevista a primeira Gala portuguesa, vamos ter finalmente uma chuva de estrelas, incluindo um ou mais com três estrelas? Será que a Michelin está a guardar-se para fazer bonito na estreia em Portugal? Gostaria muito que assim fosse, mas mais uma vez tenho as minhas dúvidas, porque isto de guardar estrelas na gaveta não seria lá muito coerente com os princípios que o guia proclama. Logo veremos como a Michelin vai preencher a Gala portuguesa, mas apostaria mais em inúmeras chamadas ao palco de quem já tem estrela, prémios especiais, bib gourmands, estrelas verdes…e, é claro, vários discursos de representantes de entidades oficiais e patrocinadores ou, quiçá, números musicais como em Toledo…
Com isto não quero dizer que considero negativa a autonomização da Gala portuguesa, embora haja um aspecto em que me reconheço nas palavras de Ricardo Costa, chefe duas estrelas do Yeatman, que em Toledo foi encarregue de entregar as nossas novas estrelas. Quando a apresentadora lhe perguntou o que achava de Portugal ter uma Gala própria, em vez da resposta esperada, cheia de orgulho pátrio, respondeu algo como — “Vamos ver como vai ser, mas tenho pena de perder esta ocasião de convívio com os amigos espanhóis” — o que despertou risos e aplausos na plateia.
Mas, voltando à parte positiva de ter uma Gala portuguesa, parece-me que, de facto, os nossos estrelados poderão estar mais visíveis internacionalmente e não dissolvidos na avalanche de estrelas com que os espanhóis são, muito justamente, premiados anualmente. A este propósito, diga-se de passagem, que comparações populacionais entre Portugal e Espanha para explicar uma eventual injustiça da Michelin em relação aos nossos restaurantes não serão lá muito adequadas. Mais do que quantitativa, a razão é qualitativa. Desde a segunda metade dos anos 90, a Espanha, por mérito próprio, transformou-se numa potência gastronómica de nível mundial, só comparável a países como França, Itália ou Japão. É certo que em Portugal o caminho nos últimos anos tem sido muito positivo, mas é claro que, tal como acontece com muitos outros países europeus, incluindo alguns da dimensão de Espanha, é pura ilusão achar que podemos ombrear com os espanhóis nesse domínio. Vamos aprender com eles, até porque acho que a grande maioria dos chefes espanhóis nos tem simpatia, tirar proveito da proximidade geográfica e olhar em frente, para o caminho que temos que percorrer, em vez de estar sempre a olhar para o lado.
Voltando à Gala portuguesa, o ponto que considero mais positivo é que talvez se recupere algum do mistério e charme que tinha antigamente o anúncio anual das estrelas. Actualmente, ao saber quem foi ou não convidado para a Gala, ficamos logo com uma ideia de quem vai ou não receber estrela. Normalmente, quem não tem nenhuma estrela e é convidado quase de certeza que a vai ganhar. Há excepções recentes, é certo, como foram no ano passado os casos de Rodrigo Castelo (Ó Balcão, Santarém) e Angélica Salvador (IN Diferente, Porto), que pensaram ir ganhar estrela quando foram convidados para a Gala em Valencia e se ficaram por Bib Gourmand. Não conheço o restaurante portuense, mas o Ó Balcão, depois da reformulação realizada no ano passado, está muito nitidamente para uma estrela e dificilmente entra nos critérios Bib Gourmand de refeições a preço acessível, que faziam mais sentido quando ainda se intitulava Taberna. Tomara que na Gala portuguesa se corrija essa e outras injustiças. Algo, no entanto, é seguro, mesmo entre quem já tem estrela e espera pela segunda ou pela terceira. Se não for convidado, não vai ganhar, porque a Michelin quer chefes no palco da Gala para tirar fotografias e potenciar o efeito mediático do investimento que faz nestes eventos.
Ora, no caso da Gala portuguesa, acho que vai ser diferente. Parece-me que, para encher a plateia, vão ter que convidar muitos chefes, tenham ou não estrela, tenham ou não possibilidade de ganhar. Voltamos assim ao suspense, ao mistério, à incerteza dos tempos antigos de que tantos são nostálgicos (bem, pelo menos, eu sou…) quando os chefes nunca sabiam bem o que lhes ia acontecer nessa noite. Oxalá os organizadores da nossa Gala tirem partido dessas condições e não a transformem simplesmente numa cópia ainda mais maçadora da congénere espanhola.
Tenho ainda uma esperança, muito vaga, de que a Gala portuguesa possa implicar numa maior atenção aos nossos restaurantes, ou seja, que os inspectores tenham mais tempo para visitá-los, não só os estrelados, mas também todos os outros que poderão estar referidos/recomendados no guia e que são muito mais procurados pelo comum dos turistas do que os de topo. É claro que a “langue de bois” que os responsáveis pelo guia praticam publicamente garante que nos dão toda a atenção, que não têm falta de inspectores, que acompanham perfeitamente as enormes mudanças que o aumento do turismo veio trazer a Portugal nos últimos tempos, mas basta verificar os restaurantes que não estão incluídos no guia português para percebermos que não é assim que as coisas se passam, embora seja verdade que a desactualização do guia em relação à nossa realidade já tenha sido bastante pior.
Creio que a equipa de inspectores para os restaurantes ibéricos continua a ser de cerca de 12 elementos, os mesmos que eram há quase vinte anos, quando entrevistei para o Diário de Notícias o chefe dos inspectores da altura. Veja-se agora a quantidade de novos projectos de qualidade que surgiram nos dois países desde esse tempo e percebe-se que é impossível que vão muito além do que já fazem, mesmo sabendo que o guia para o Rio de Janeiro e São Paulo (que era também coberto pela equipa ibérica) foi suspenso por tempo indeterminado e que há inspectores que vêm de outros países, embora, provavelmente, mais para confirmar estrelas do que para descobrir bibs gourmand. Ou seja, mais do que galas, o verdadeiro reconhecimento que a nossa gastronomia poderia ter era mais inspectores e visitarem mais restaurantes em Portugal, viessem de onde viessem, fossem de que nacionalidade fossem.
Uma palavra final para os resultados dos restaurantes portugueses. Em primeiro lugar, o facto de nenhum restaurante ter perdido, após o período dificílimo que viveram nos últimos dois anos por causa da pandemia, é de destacar e louvar. Depois, uma enorme satisfação com a inesperada estrela para o Kanazawa, de Paulo Morais, um dos chefes mais trabalhadores e discretos que conheço (comecei a acompanhar o seu trabalho no final dos anos 90, quando ele estava no Midori, no hotel da Penha Longa), cujo profissionalismo e competência pude testemunhar de perto, já que teve restaurante em quase todos os Peixe em Lisboa. Era sempre dos primeiros a chegar, tivesse saído à hora que fosse no dia anterior, e cuidava de tudo pessoalmente, concentrado em fazer o melhor possível para os seus clientes. Aos 51 anos, é um exemplo de como pode compensar persistir num caminho em que se acredita. Falei agora com Paulo Morais ao telefone, porque logo depois da Gala ele foi embora, não ficando para os “comes e bebes” que se seguiram (e que terão sido do piorzinho que já vi e eu estive em todas as galas, menos na do ano passado, por causa da pandemia).
“Na realidade, quando fui convidado para a Gala pela Michelin, achei que deveria ser para um Bib Gourmand, como tinha acontecido ao Rodrigo Castelo no ano passado. Mas depois as pessoas com quem fui falando explicaram-me que os preços do Kanazawa não tinham nada a ver com os de um Bib Gourmand, mas mesmo assim preferi não dar nada como adquirido para depois não ter desilusões”, conta Paulo Morais, que mostra bem como o injusto Bib Gourmand para o Ó Balcão, que se mantém paradoxalmente este ano, foi traumático e desorientador para muitos chefes portugueses, a começar, evidentemente, por Rodrigo Castelo.
Paulo Morais explica ainda a sua surpresa em receber a estrela nesta altura. “Quando o Tomo [o chefe japonês Tomoaki Kanazawa, que fundou o restaurante] decidiu ir para o Japão em 2017 e deixar-me o Kanazawa, eu sabia que ele tinha esperança de ganhar uma estrela. E eu acho que isso aconteceria rapidamente se ele tivesse ficado. Nos dois anos seguintes ainda pensei no assunto, mas não vi nenhum sinal de interesse da parte da Michelin e achei que não haveria hipótese. Só neste ano é que eles puseram o restaurante no guia online e fiquei satisfeito, mas não pensei que teria em estrela”, afirma. E a verdade é que já está a ter efeitos. Antes da estrela, para jantar num dos oito lugares ao balcão no Kanazawa era preciso uma antecedência de duas/três semanas. Agora, os pedidos de reserva aumentaram consideravelmente e a espera já vai para mais de um mês. No entanto, como o restaurante também está a abrir para o almoço, há hipótese de conseguir reserva mais rapidamente nesse horário.
Ainda sobre os novos estrelados portugueses, grande satisfação também com o reconhecimento do Euskalduna, de Vasco Coelho Santos, que, como dizia o outro, “só pecou por tardia”, e pelo rápido êxito do Encanto, mostrando que José Avillez continua a ter uma influência ímpar na cozinha portuguesa e que possibilita o surgimento de novos valores, como Diogo Formigo, chefe do restaurante agora estrelado. Quanto ao Le Monument, de Julien Montbabut, só me lembro de ter lá estado há um bom par de anos, logo depois da abertura, e de ter encontrado uma cozinha que se adivinhava superior no conceito, mas que sofria de bastante irregularidade na execução. O chefe francês tinha chegado há pouco tempo e ainda não tinha a equipa que queria, explicaram-me. Pelos vistos, é mais uma prova de que a persistência compensa e um exemplo para muito boa gente na restauração portuguesa que pensa que basta ter um chefe “mediático” para ter estrela. Finalmente, o Kabuki, de Paulo Alves, outra prova de que compensa apostar em boas equipas para bons projectos. E de que o peixe das nossas costas, quando bem tratado, é uma estrela que brilha a grande altura.
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