Nos dias de hoje, pode parecer um pouco anacrónico dizer que é ousado abrir um restaurante de matriz vegetariana junto à costa, numa região que venera a carne e atrai pelos produtos do mar. É o próprio chef Nuno Castro que menciona essa característica, ao referir-se ao restaurante “plant based” que ele e o seu sócio Ricardo Rodrigues (proprietário do vizinho Esquina do Avesso e do Terminal 4450, também ali próximo, nos quais Nuno Castro é chefe consultor) abriram, em Agosto de 2018, em Leça da Palmeira, a poucos quilómetros do Porto.
Acontece que a dupla viu nesse desafio uma oportunidade de fugir ao mais do mesmo, que aliás já caracterizava o Esquina do Avesso. Porém, ao contrário deste último, o Fava Tonka foi pensado e criado de raiz de acordo com o conceito da sua cozinha. Visitado ao almoço, num dia solarengo, a beleza do espaço, cuja sala pode acolher trinta e seis pessoas, destaca-se de imediato pela sua luminosidade, pela cozinha aberta, pela predominância de plantas e das madeiras, como material principal, características que criam de imediato uma sensação de conforto e bem-estar.
Além do couvert, com bom pão artesanal, azeite e humus de feijão, a carta do Fava Tonka, que privilegia ingredientes biológicos e sazonais, é composta por dez pratos e três sobremesas, sendo complementada com uma proposta diária diferente, de segunda a sexta ao almoço.
A descrição dos pratos é simples e genérica, revelando o nome dos principais ingredientes e pouco mais. Contudo, quando começam a chegar à mesa, a apresentação cuidada, sem rebuscamentos desnecessários, revela aquilo que descobrimos logo após as primeiras garfadas (ou colheradas): uma cozinha sincera e um saber fazer onde se cruzam influências, técnicas antigas e contemporâneas, portuguesas e do mundo.
Pensado como uma comida aconchegante, um género de rabanada salgada para um dia frio de Inverno, a sopa de cebola, trufa, queijo da ilha São Jorge de 24 meses, remete para a gulodice. Porém, a proposta vai bem além de um prato de “Comfort food” onde não se esperam surpresas. Há refinamento nos aromas e nos sabores limpos e bem definidos. E há contraste de texturas, também. Graças à ideia de deitar o caldo no momento de servir, o que faz com que possamos desfrutar do brioche (passado na manteiga) ainda crocante nas primeiras dentadas. Uma delícia!
A katsuo sando é uma espécie de sandes de panado “kitada” à japonesa. Neste caso, Nuno Castro substitui o bife de porco por um cogumelo pleuroto e segue o mesmo procedimento: envolve-o em panko, frita-o e serve-o numa sanduíche de pão aparado e tostado, com ovo cozido e salada. No fundo, prova que é possível inspirar-se numa receita de uma popular proposta de carne e arranjar-lhe uma alternativa à altura, sem recorrer um substituto triste e processado como o seitan.
No “nabo, nabiças e beurre blanc de algas”, o chef do Fava Tonka escava umas bolas no nabo, coze-as e junta-as num prato fundo com um ovo de codorniz. Com as sobras, junta uma batata e confeciona um puré. Depois, acrescenta em cima umas folhas cruas da rama do vegetal, ou seja, a nabiça. Pode parecer poucochinho, mas esse detalhe singelo, esse sabor herbáceo e ligeiramente picante das folhas, elevam o prato para outra dimensão (já o beurre blanc de algas não me deixou grande memória, o que não é necessariamente mau – provavelmente estava bem integrado)
Sopa de cebola, trufa, queijo da ilha São Jorge de 24 meses
katsuo sando de cogumelo pleuroto
Nabo, nabiças e beurre blanc de algas
Couve coração, emulsão de batata e jus de cebola
O último prato solicitado foi a “couve coração, emulsão de batata e jus de cebola”. Mas esperem, isso não é uma variação entre o prato anterior e a sopa de cebola? Sim, pode parecer que andam sempre à volta dos mesmos ingredientes, talvez porque são os mais abundantes no Inverno, mas em nenhum momento sentimos qualquer monotonia – além disso, para ser justo, a escolha foi nossa, havia outras propostas na carta. A couve, bem cozida e queimada no topo (no limite de ficar amarga), o caldo de cebola reduzido, onde se sentia a agradável presença de limonete, e a emulsão de batata ligada com azeite – em vez de manteiga – comprovaram mais uma vez a competência de Nuno Castro para trabalhar pratos vegetarianos com alma e sabor.
Já as sobremesas, pareceram-me uns furos abaixo. Ou, pelo menos, não encontrei a mesma subtileza ou o twist de génio das propostas salgadas. Por exemplo, na “couve-flor, caramelo salgado e avelã”, Nuno Castro coloca duas quenelles de gelado, um de couve-flor feito com leite e chocolate branco e outra de caramelo salgado em cima de uma base de pão de ló, acrescenta mais caramelo salgado, um crumble feito com os troncos da couve e uma telha pelo meio. O resultado, além de demasiado doce, pareceu-me um pouco confuso, com elementos a mais. Já o bruleé de limonete, gelado de iogurte e pólen (e um aroma demasiado presente, que me pareceu ser a alfazema), era mais ameno na doçura, mas sem especial brilho.
bruleé de limonete, gelado de iogurte e pólen
couve-flor, caramelo salgado e avelã
Em termos de vinhos a carta do Fava Tonka é curta – dez brancos, onze tintos e três espumosos – mas coerente com o conceito e com opções, quer em termos de estilos ou de regiões, predominando os vinhos bio (de pequenos a grandes produtores), biodinâmicos e naturais. Os preços são sensatos, os copos adequados e a temperatura de serviço correcta. A refeição foi acompanhada de um óptimo branco de intervenção mínima, o António Madeira Dão Vinhas Velhas 2018, um vinho delicioso, complexo, mas que se bebe com leveza e que vai muito bem com este estilo de cozinha.
No que diz respeito ao serviço de sala, o atendimento foi prestado com simpatia e profissionalismo adequado a um lugar informal, sem tiques despropositados, mas com atenção a certos detalhes, como o timing adequado na chegada dos pratos (nem lento, nem demasiado apressado).
Em jeito de resumo, termino referindo que é uma aposta ganha e sem dúvida uma mais valia a existência de restaurante com as características do Fava Tonka. Estão por isso de parabéns, Nuno Castro e Ricardo Rodrigues, por apostarem num espaço bonito e agradável com uma cozinha saborosa, sincera e aconchegante.
Preço médio, por pessoa, com bebidas: 30€. Pagou-se por esta refeição, 75€/2 pessoas
Contactos: R. Santa Catarina 100, 4450-631 Leça da Palmeira (Matosinhos). Telefone: 915 343 494
Aberto de quarta a segunda, 12:30 – 15:00 e 19:30 – 23:00. Encerra à terça-feiraClassificação: Cozinha: 17; Sala: 16.5; Vinhos:16.5
Texto publicado originalmente na Revista de Vinhos 364 (Março 2020). Fotos: Miguel Pires (pratos); Facebook do restaurante (restantes).
Nota: após o período de fecho obrigatório, devido à pandemia do Covid-19, o Fava Tonka reabriu no final de Maio com todos os cuidados de higiene e segurança definidos pela DGS. À data desta publicação, os horários indicados acima foram retomados.
Nos dias de hoje, pode parecer um pouco anacrónico dizer que é ousado abrir um restaurante de matriz vegetariana junto à costa, numa região que venera a carne e atrai pelos produtos do mar. É o próprio chef Nuno Castro que menciona essa característica, ao referir-se ao restaurante “plant based” que ele e o seu sócio Ricardo Rodrigues (proprietário do vizinho Esquina do Avesso e do Terminal 4450, também ali próximo, nos quais Nuno Castro é chefe consultor) abriram, em Agosto de 2018, em Leça da Palmeira, a poucos quilómetros do Porto.
Acontece que a dupla viu nesse desafio uma oportunidade de fugir ao mais do mesmo, que aliás já caracterizava o Esquina do Avesso. Porém, ao contrário deste último, o Fava Tonka foi pensado e criado de raiz de acordo com o conceito da sua cozinha. Visitado ao almoço, num dia solarengo, a beleza do espaço, cuja sala pode acolher trinta e seis pessoas, destaca-se de imediato pela sua luminosidade, pela cozinha aberta, pela predominância de plantas e das madeiras, como material principal, características que criam de imediato uma sensação de conforto e bem-estar.
Além do couvert, com bom pão artesanal, azeite e humus de feijão, a carta do Fava Tonka, que privilegia ingredientes biológicos e sazonais, é composta por dez pratos e três sobremesas, sendo complementada com uma proposta diária diferente, de segunda a sexta ao almoço.
A descrição dos pratos é simples e genérica, revelando o nome dos principais ingredientes e pouco mais. Contudo, quando começam a chegar à mesa, a apresentação cuidada, sem rebuscamentos desnecessários, revela aquilo que descobrimos logo após as primeiras garfadas (ou colheradas): uma cozinha sincera e um saber fazer onde se cruzam influências, técnicas antigas e contemporâneas, portuguesas e do mundo.
Pensado como uma comida aconchegante, um género de rabanada salgada para um dia frio de Inverno, a sopa de cebola, trufa, queijo da ilha São Jorge de 24 meses, remete para a gulodice. Porém, a proposta vai bem além de um prato de “Comfort food” onde não se esperam surpresas. Há refinamento nos aromas e nos sabores limpos e bem definidos. E há contraste de texturas, também. Graças à ideia de deitar o caldo no momento de servir, o que faz com que possamos desfrutar do brioche (passado na manteiga) ainda crocante nas primeiras dentadas. Uma delícia!
A katsuo sando é uma espécie de sandes de panado “kitada” à japonesa. Neste caso, Nuno Castro substitui o bife de porco por um cogumelo pleuroto e segue o mesmo procedimento: envolve-o em panko, frita-o e serve-o numa sanduíche de pão aparado e tostado, com ovo cozido e salada. No fundo, prova que é possível inspirar-se numa receita de uma popular proposta de carne e arranjar-lhe uma alternativa à altura, sem recorrer um substituto triste e processado como o seitan.
No “nabo, nabiças e beurre blanc de algas”, o chef do Fava Tonka escava umas bolas no nabo, coze-as e junta-as num prato fundo com um ovo de codorniz. Com as sobras, junta uma batata e confeciona um puré. Depois, acrescenta em cima umas folhas cruas da rama do vegetal, ou seja, a nabiça. Pode parecer poucochinho, mas esse detalhe singelo, esse sabor herbáceo e ligeiramente picante das folhas, elevam o prato para outra dimensão (já o beurre blanc de algas não me deixou grande memória, o que não é necessariamente mau – provavelmente estava bem integrado)
O último prato solicitado foi a “couve coração, emulsão de batata e jus de cebola”. Mas esperem, isso não é uma variação entre o prato anterior e a sopa de cebola? Sim, pode parecer que andam sempre à volta dos mesmos ingredientes, talvez porque são os mais abundantes no Inverno, mas em nenhum momento sentimos qualquer monotonia – além disso, para ser justo, a escolha foi nossa, havia outras propostas na carta. A couve, bem cozida e queimada no topo (no limite de ficar amarga), o caldo de cebola reduzido, onde se sentia a agradável presença de limonete, e a emulsão de batata ligada com azeite – em vez de manteiga – comprovaram mais uma vez a competência de Nuno Castro para trabalhar pratos vegetarianos com alma e sabor.
Já as sobremesas, pareceram-me uns furos abaixo. Ou, pelo menos, não encontrei a mesma subtileza ou o twist de génio das propostas salgadas. Por exemplo, na “couve-flor, caramelo salgado e avelã”, Nuno Castro coloca duas quenelles de gelado, um de couve-flor feito com leite e chocolate branco e outra de caramelo salgado em cima de uma base de pão de ló, acrescenta mais caramelo salgado, um crumble feito com os troncos da couve e uma telha pelo meio. O resultado, além de demasiado doce, pareceu-me um pouco confuso, com elementos a mais. Já o bruleé de limonete, gelado de iogurte e pólen (e um aroma demasiado presente, que me pareceu ser a alfazema), era mais ameno na doçura, mas sem especial brilho.
Em termos de vinhos a carta do Fava Tonka é curta – dez brancos, onze tintos e três espumosos – mas coerente com o conceito e com opções, quer em termos de estilos ou de regiões, predominando os vinhos bio (de pequenos a grandes produtores), biodinâmicos e naturais. Os preços são sensatos, os copos adequados e a temperatura de serviço correcta. A refeição foi acompanhada de um óptimo branco de intervenção mínima, o António Madeira Dão Vinhas Velhas 2018, um vinho delicioso, complexo, mas que se bebe com leveza e que vai muito bem com este estilo de cozinha.
No que diz respeito ao serviço de sala, o atendimento foi prestado com simpatia e profissionalismo adequado a um lugar informal, sem tiques despropositados, mas com atenção a certos detalhes, como o timing adequado na chegada dos pratos (nem lento, nem demasiado apressado).
Em jeito de resumo, termino referindo que é uma aposta ganha e sem dúvida uma mais valia a existência de restaurante com as características do Fava Tonka. Estão por isso de parabéns, Nuno Castro e Ricardo Rodrigues, por apostarem num espaço bonito e agradável com uma cozinha saborosa, sincera e aconchegante.
Preço médio, por pessoa, com bebidas: 30€. Pagou-se por esta refeição, 75€/2 pessoas
Contactos: R. Santa Catarina 100, 4450-631 Leça da Palmeira (Matosinhos). Telefone: 915 343 494
Aberto de quarta a segunda, 12:30 – 15:00 e 19:30 – 23:00. Encerra à terça-feiraClassificação: Cozinha: 17; Sala: 16.5; Vinhos:16.5
Texto publicado originalmente na Revista de Vinhos 364 (Março 2020). Fotos: Miguel Pires (pratos); Facebook do restaurante (restantes).
Nota: após o período de fecho obrigatório, devido à pandemia do Covid-19, o Fava Tonka reabriu no final de Maio com todos os cuidados de higiene e segurança definidos pela DGS. À data desta publicação, os horários indicados acima foram retomados.
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