Nunca pensei que fosse sentir a falta de tantos sons… o barulho surdo dos pratos deitados sobre o tampo da mesa; as batidas ocas no cachimbo que solta o pó do café; o tremer agudo dos copos que passeiam na bandeja. Minha vida, afinal, há 22 anos, é escrever sobre restaurantes. Escrutinar a sala, clientes, empregados, música, uniformes e utensílios é um cacoete laboral tão automático quanto indisfarçável.
E então veio a praga.
Quem tem o próprio negócio – seja ele ligado à gastronomia ou não – sabe que é impossível fazer uma refeição sem a companhia do medo. O fantasma do vírus é como o ovo podre que estraga a receita ou um convidado indesejado que teima em sentar-se à cabeceira. É o medo que espalha planilhas imaginárias sobre os pães do couvert, obriga-nos a rever metas de vendas entre goles de vinho e faz-nos pensar em planos estratégicos enquanto alguém anuncia o “peixe do dia”.
A peste não é boa companhia para o almoço.
Felizmente há sítios em que ela não consegue entrar.

Em abril de 2014, o chef Rafa Costa e Silva, recém-saído do Mugaritz, inaugurava seu restaurante em Botafogo, no Rio de Janeiro. Lá estive umas oito vezes, desde então, sem que me decepcionasse em nenhuma delas. Não à toa, logo recebeu sua primeira estrela Michelin, ficou em 16ª posição no Latin America’s Fifty Best Award e em 74ª no ranking mundial do mesmo prémio.
Durante o isolamento, surpreendeu a todos com a rápida inauguração do Lasai Empório, loja virtual com conservas, compotas, vinhos, drinques e pratos semiacabados deliciosos, em caixa muito bem montada. Confesso, no entanto, que no escuro do quarto, em mantras sussurrados ao fim do dia, ansiava pela reabertura do restaurante. Afinal, minha vida é ver a mesa posta noutro sítio, que não minha casa.
Os amigos muito elogiam, e com razão, os pratos de carnes, aves ou caça do Lasai, com molhos tão ricos em colagénio – de estalar a língua no céu da boca – que dispensam a visita ao dermatologista, para reposição. Posso atestar que, no último almoço pós-pandémico, a costela de porco com aipim macio feito na manteiga, a textura da farofa de aveia e as folhas de mostarda que erguiam o todo fizeram, sem dúvida, um prato perfeito. Mas o facto é que voltaria, todos os dias, pela delicadeza das preparações com legumes.
O rabanete-melancia com creme de palmito e couve crespa deveria ser vendidos aos baldes; a ricota de ervilhas, brócolo comum e seu primo extraterrestre, a couve-romanesco, com molho feito das folhas de capuchinha e espinafre foi inesquecível. Enquanto desfiei estas linhas, aliás, salivei com a lembrança da sobremesa etérea de chocolate branco com tangerina e cardamomo.
A qualidade dos produtos não vem sem esforço. Além das feiras orgânicas, que garantem parte dos legumes, frutas e verduras de sua ementa, cultiva os ingredientes que não encontra com facilidade nos 10.000m2 de sua horta própria, no Vale das Videiras, a 100km da cidade do Rio de Janeiro. De lá vêm tupinambos, beterrabas e cenouras de todas as cores, aipo-rábano e couve crespa (kale), entre outros.
Não bastasse a excelência nos pratos, Malena Cardeal, sua mulher e sócia, comanda uma equipa de salão impecável, que conta também com Zigor, do País Basco, que sempre me impressiona pela elegância e atenção aos detalhes. Por fim, a sommelière Maíra Freire brilha na harmonização de cabo a rabo (coisa rara de ver), dando preferência a vinhos naturais, orgânicos e biodinâmicos.
Eu sei, eu sei… é maldade fazer inveja aos amigos portugueses que não têm planos de vir ao Brasil, ou não podem cá estar tão cedo. Se serve de algum consolo, o chef planejava a abertura de um restaurante em Londres quando a pandemia, travão da vida, adiou seus planos. Já visitava sítios, com projeto arquitetónico em mãos e menu pronto, mas o Mundo parou. Espero contar-vos, em breve, o final feliz desta novela.
Seja no Rio ou em Londres, a verdade é que precisamos, mais do que nunca, de bons restaurantes. Enquanto a cura não vem, a melhor vacina é uma refeição tão espetacular que nos sequestre das masmorras do vírus e nos faça felizes por um par de horas.
À vossa!
Fotos: Cristiana Beltrão / Foto de entrada: Rafa Costa e Silva com a equipa e o Chef David Toutin – Instagram do Lasai
Da uma vontade louca de comer cada palavra do seu texto…😂😋
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Pingback: O Brasil tem 2 novos duas estrelas Michelin e já se vê uma tendência para os próximos guias
Gostava de saber qual a justificativa da Michelin para não dar a segunda estrela ao Lasai
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