Em um ano de pandemia, poucos negócios tiveram que se adaptar tanto quanto os restaurantes: muitos se metamorfosearam em pizzarias, abandonaram (pelo menos momentaneamente) seus conceitos de cozinha sustentável para servir pratos que fizessem mais sentido aos consumidores, avançaram quanto puderam pelos passeios para poder receber (muito menos) clientes quando comer dentro estava proibido, ganharam tracção na boleia de motos cada vez mais aceleradas pelas cidades, “aconteceram” como eventos em praças, jardins, espaços privados.
Tantas adaptações colocam em questão uma pergunta pertinente nesses tempos actuais em que a incerteza é sempre o prato do dia: como fica a própria definição da palavra restaurante depois de ser tão esgarçada, dobrada, alargada para caber em tantos novos formatos? Será que ela ainda vai servir? Tenho minhas dúvidas de que os restaurantes voltarão a ser exactamente o que eram em Dezembro de 2019, quando ainda nos reuníamos nas mesas sem a sombra da onda destruidora que já começava a se formar atrás de nossas cabeças.
Em Abril de 2020, escrevi uma reportagem para o Público que afirmava que “os restaurantes não seriam mais apenas só um local”: eles teriam que se transformar em conceitos, como marcas mais amplas, para poderem se perpetuar em um momento tão difícil, para dizer o mínimo. Passado quase um ano, a reportagem ainda faz muito sentido e muitas das projecções se confirmaram. Mas outras lições ainda vieram com tanta turbulência: percebemos, sobretudo, a fragilidade de um modelo de negócio que trabalha com margens muito apertadas, equipas inchadas, uma grande dificuldade em planeamento estratégico no geral.
Os números se confirmaram. No Brasil, foram mais de 300 mil negócios encerrados em um ano de pandemia. Com essa nova onda que mata até 3 mil pessoas por dia no país, mais 70 mil devem fechar as portas, segundo a Abrasel – Associação Brasileira de Bares e Restaurantes. Em todo o mundo, as baixas são tristíssimas: Nova Iorque, uma cidade que foi tão moldada pelos restaurantes quanto por sua cena artística, já disse adeus a mais de mil deles, mesmo com uma ajuda considerável (em alguns casos) do governo. Paris, Londres, Madrid: não houve cidade que não perdesse um pouco de seu brilho com o encerramento dos negócios de restauração.
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Ribeira, Porto, em época de confinamento (Foto: Rafael Tonon)
Mas voltemos à pergunta: o que será um restaurante hoje? Uma sacola em papel pardo deixada na porta do nosso apartamento? Uma caixa de ingredientes devidamente porcionados e prontos para cozinhar seguindo a receita de um chef que criou tudo aquilo pensando em como entrar na nossa casa? Um jantar que acontece na cobertura de um prédio? Uma refeição que se faz na calçada com o empregado vertendo vinho no nosso copo enquanto os carros passam ao lado jogando o fumo dos seus escapes nas nossas caras?
Talvez hoje seja tudo isso, e o que mais for possível. Facto é que muitos empresários tiveram que voltar aos primórdios do que constituiu o restaurante na sua formação: a simples troca de comida por dinheiro, deixando de lado toda a conquista que definiu esse modelo de negócio no decorrer das décadas. A versão simples da história, que já estamos cansados de saber. Mas todos nós compreendemos que um restaurante é muito mais do que um negócio. Eles são um dos pilares da alimentação moderna, uma forma de socialização que marcou todas as nossas relações sociais.
“Restaurante é a ideia de um lugar para irmos juntos para comer, de criar memórias, gerar sorrisos”, diz a empresária e cozinheira Jo Kimberly, dona do the Griddle, em Los Angeles, nesta excelente reportagem do Eater sobre o assunto. “O salão de um restaurante é o Éden dos gastrónomos”, como bem apontou Brillat-Savarin.
Sem serviço, o restaurante é só venda de refeições e perde sua mais profunda essência. Mas há quem acredite que é possível manter essa chama da hospitalidade acesa até mesmo na virtualização dos restaurantes: na forma que se lida com os motoristas, como se apresenta a comida aos clientes, a maneira de estabelecer um preço, de oferecer uma experiência (essa palavra tão combalida) aos clientes, onde quer que estejam. Em tempos em que não sabemos como os restaurantes voltarão a operar, muita gente do sector tem adaptado suas receitas, mas também a forma de se relacionar com o consumidor, da maneira que dá, para seguirem lembrados e relevantes. E é preciso reconhecer qualquer esforço no cenário actual.
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Brigada de cozinha do restaurante Paul Bocuse (Foto: Guillaume Tranquard)
Curioso pensar que os restaurantes mudaram tão pouco desde a década de 1820, quando as principais casas de alimentação da capital francesa (onde eclodiu a restauração como a conhecemos) já se assemelhavam tanto àqueles com os quais estamos familiarizados hoje em dia. “Estamos em 2021 e ainda temos brigadas enormes à la Escoffier, uma quantidade absurda de gente desempenhando funções muito básicas nas cozinhas”, diz o chef Raphael Despirite, do Fechado para Jantar.
“Acho muito pouco viável que os restaurantes consigam manter esse formato de equipes inchadas. Penso que teremos — e precisamos — de uma renovação automotiva e moderna na forma como cozinhamos nas comidas profissionais”, ele defende. Segundo Despirite, outras indústrias estão passando por algo semelhante, com máquinas ajudando nas funções mais básicas que na cozinha hoje precisam ser feitas por uma dezena de estagiários não remunerados em restaurantes estrelados pelo mundo. “Como ainda não temos um equipamento capaz de fazer molhos complexos que são base de muitas das receitas? Ainda usamos as mesmas panelas e utensílios. Difícil o sector evoluir sem modernização”.
Para ele, grande parte dos restaurantes devem enxugar-se na equipa, mas também no tamanho, em operações menos complexas. “Acredito que o modelo tende a ser cada vez mais o de restaurantes menores, estilo balcão omakase. Um chef e alguns ajudantes, um sommelier que faz tudo na sala”, defende. Ironicamente um regresso à origem dos bistrôs, o formato que disseminou o modelo dos restaurantes no mundo todo.
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Talvez essa crise de identidade do restaurante possa nos levar além: difícil não sair de tempos obscuros profundamente transformados. Para o bem e para o mal, a sociedade é prova de nossa adaptação resoluta às tragédias — colectivas e pessoais. As guerras pariram dor, mas também mudanças. A que estamos vivendo — também uma tristíssima contenda — pode ser um arranque para renovações mesmo necessárias.
A indústria de restaurantes esteve sempre baseada em grandes chefs/empresários que construíram suas reputações e impérios a partir de um sistema antiquado que valorizava o culto do restaurateur bem relacionado. Que quase nunca reconhecia os que estavam nos bastidores para fazer a máquina funcionar, que enriquecia o bolso de dois ou três empresários no topo da cadeia às custas de trabalho exaustivo de uma equipa frequentemente humilhada e mantida sob uma pressão que estava mesmo na hora explodir.
Há uma nova geração de chefs/empreendedores dispostos a implementar novos modelos e a mudar o formato de negócios que, na pandemia, comprovou que arrebenta sempre do lado mais fraco. Enquanto os trabalhadores de restaurantes defendem melhores condições e salários justos, a pandemia tem acelerado essa mudança estrutural muito necessária, como bem apontou Kevin Koczwara na Vice esta semana.
Pode ser que seja essa a hora de fazermos aquela força-tarefa para limpar os escombros que se amontoaram no caminho do sector nesses anos todos e que actualmente têm dificultado ainda mais a passagem, e tentar reconstruir os alicerces para que a indústria da restauração possa prosperar mais justa e, claro, bem mais forte. Porque, ao que tudo indica, há muitos outros bombardeios vindo aí.
Crónica de Rafael Tonon publicada originalmente na sua newsletter Ao Ponto, (que pode ser subscrita, aqui). Foto de entrada retirada do instagram do restaurante Mediamatic, em Amesterdão.
Em um ano de pandemia, poucos negócios tiveram que se adaptar tanto quanto os restaurantes: muitos se metamorfosearam em pizzarias, abandonaram (pelo menos momentaneamente) seus conceitos de cozinha sustentável para servir pratos que fizessem mais sentido aos consumidores, avançaram quanto puderam pelos passeios para poder receber (muito menos) clientes quando comer dentro estava proibido, ganharam tracção na boleia de motos cada vez mais aceleradas pelas cidades, “aconteceram” como eventos em praças, jardins, espaços privados.
Tantas adaptações colocam em questão uma pergunta pertinente nesses tempos actuais em que a incerteza é sempre o prato do dia: como fica a própria definição da palavra restaurante depois de ser tão esgarçada, dobrada, alargada para caber em tantos novos formatos? Será que ela ainda vai servir? Tenho minhas dúvidas de que os restaurantes voltarão a ser exactamente o que eram em Dezembro de 2019, quando ainda nos reuníamos nas mesas sem a sombra da onda destruidora que já começava a se formar atrás de nossas cabeças.
Em Abril de 2020, escrevi uma reportagem para o Público que afirmava que “os restaurantes não seriam mais apenas só um local”: eles teriam que se transformar em conceitos, como marcas mais amplas, para poderem se perpetuar em um momento tão difícil, para dizer o mínimo. Passado quase um ano, a reportagem ainda faz muito sentido e muitas das projecções se confirmaram. Mas outras lições ainda vieram com tanta turbulência: percebemos, sobretudo, a fragilidade de um modelo de negócio que trabalha com margens muito apertadas, equipas inchadas, uma grande dificuldade em planeamento estratégico no geral.
Os números se confirmaram. No Brasil, foram mais de 300 mil negócios encerrados em um ano de pandemia. Com essa nova onda que mata até 3 mil pessoas por dia no país, mais 70 mil devem fechar as portas, segundo a Abrasel – Associação Brasileira de Bares e Restaurantes. Em todo o mundo, as baixas são tristíssimas: Nova Iorque, uma cidade que foi tão moldada pelos restaurantes quanto por sua cena artística, já disse adeus a mais de mil deles, mesmo com uma ajuda considerável (em alguns casos) do governo. Paris, Londres, Madrid: não houve cidade que não perdesse um pouco de seu brilho com o encerramento dos negócios de restauração.
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Mas voltemos à pergunta: o que será um restaurante hoje? Uma sacola em papel pardo deixada na porta do nosso apartamento? Uma caixa de ingredientes devidamente porcionados e prontos para cozinhar seguindo a receita de um chef que criou tudo aquilo pensando em como entrar na nossa casa? Um jantar que acontece na cobertura de um prédio? Uma refeição que se faz na calçada com o empregado vertendo vinho no nosso copo enquanto os carros passam ao lado jogando o fumo dos seus escapes nas nossas caras?
Talvez hoje seja tudo isso, e o que mais for possível. Facto é que muitos empresários tiveram que voltar aos primórdios do que constituiu o restaurante na sua formação: a simples troca de comida por dinheiro, deixando de lado toda a conquista que definiu esse modelo de negócio no decorrer das décadas. A versão simples da história, que já estamos cansados de saber. Mas todos nós compreendemos que um restaurante é muito mais do que um negócio. Eles são um dos pilares da alimentação moderna, uma forma de socialização que marcou todas as nossas relações sociais.
“Restaurante é a ideia de um lugar para irmos juntos para comer, de criar memórias, gerar sorrisos”, diz a empresária e cozinheira Jo Kimberly, dona do the Griddle, em Los Angeles, nesta excelente reportagem do Eater sobre o assunto. “O salão de um restaurante é o Éden dos gastrónomos”, como bem apontou Brillat-Savarin.
Sem serviço, o restaurante é só venda de refeições e perde sua mais profunda essência. Mas há quem acredite que é possível manter essa chama da hospitalidade acesa até mesmo na virtualização dos restaurantes: na forma que se lida com os motoristas, como se apresenta a comida aos clientes, a maneira de estabelecer um preço, de oferecer uma experiência (essa palavra tão combalida) aos clientes, onde quer que estejam. Em tempos em que não sabemos como os restaurantes voltarão a operar, muita gente do sector tem adaptado suas receitas, mas também a forma de se relacionar com o consumidor, da maneira que dá, para seguirem lembrados e relevantes. E é preciso reconhecer qualquer esforço no cenário actual.
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Curioso pensar que os restaurantes mudaram tão pouco desde a década de 1820, quando as principais casas de alimentação da capital francesa (onde eclodiu a restauração como a conhecemos) já se assemelhavam tanto àqueles com os quais estamos familiarizados hoje em dia. “Estamos em 2021 e ainda temos brigadas enormes à la Escoffier, uma quantidade absurda de gente desempenhando funções muito básicas nas cozinhas”, diz o chef Raphael Despirite, do Fechado para Jantar.
“Acho muito pouco viável que os restaurantes consigam manter esse formato de equipes inchadas. Penso que teremos — e precisamos — de uma renovação automotiva e moderna na forma como cozinhamos nas comidas profissionais”, ele defende. Segundo Despirite, outras indústrias estão passando por algo semelhante, com máquinas ajudando nas funções mais básicas que na cozinha hoje precisam ser feitas por uma dezena de estagiários não remunerados em restaurantes estrelados pelo mundo. “Como ainda não temos um equipamento capaz de fazer molhos complexos que são base de muitas das receitas? Ainda usamos as mesmas panelas e utensílios. Difícil o sector evoluir sem modernização”.
Para ele, grande parte dos restaurantes devem enxugar-se na equipa, mas também no tamanho, em operações menos complexas. “Acredito que o modelo tende a ser cada vez mais o de restaurantes menores, estilo balcão omakase. Um chef e alguns ajudantes, um sommelier que faz tudo na sala”, defende. Ironicamente um regresso à origem dos bistrôs, o formato que disseminou o modelo dos restaurantes no mundo todo.
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Talvez essa crise de identidade do restaurante possa nos levar além: difícil não sair de tempos obscuros profundamente transformados. Para o bem e para o mal, a sociedade é prova de nossa adaptação resoluta às tragédias — colectivas e pessoais. As guerras pariram dor, mas também mudanças. A que estamos vivendo — também uma tristíssima contenda — pode ser um arranque para renovações mesmo necessárias.
A indústria de restaurantes esteve sempre baseada em grandes chefs/empresários que construíram suas reputações e impérios a partir de um sistema antiquado que valorizava o culto do restaurateur bem relacionado. Que quase nunca reconhecia os que estavam nos bastidores para fazer a máquina funcionar, que enriquecia o bolso de dois ou três empresários no topo da cadeia às custas de trabalho exaustivo de uma equipa frequentemente humilhada e mantida sob uma pressão que estava mesmo na hora explodir.
Há uma nova geração de chefs/empreendedores dispostos a implementar novos modelos e a mudar o formato de negócios que, na pandemia, comprovou que arrebenta sempre do lado mais fraco. Enquanto os trabalhadores de restaurantes defendem melhores condições e salários justos, a pandemia tem acelerado essa mudança estrutural muito necessária, como bem apontou Kevin Koczwara na Vice esta semana.
Pode ser que seja essa a hora de fazermos aquela força-tarefa para limpar os escombros que se amontoaram no caminho do sector nesses anos todos e que actualmente têm dificultado ainda mais a passagem, e tentar reconstruir os alicerces para que a indústria da restauração possa prosperar mais justa e, claro, bem mais forte. Porque, ao que tudo indica, há muitos outros bombardeios vindo aí.
Crónica de Rafael Tonon publicada originalmente na sua newsletter Ao Ponto, (que pode ser subscrita, aqui). Foto de entrada retirada do instagram do restaurante Mediamatic, em Amesterdão.
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