Faz pouco mais de um ano, escrevi aqui a primeira critica após o confinamento, que coincidiu também com a minha primeira visita a um restaurante depois da fase inicial da pandemia. Recordo a apreensão dos clientes na sala, o desconforto e alguma insegurança no atendimento feito de máscara. Passados então 12 meses, a situação pandémica não terminou, mas nota-se outra confiança em boa parte das pessoas, como pude constatar ao observar uma certa euforia nas ruas, quando me deslocava para o restaurante, numa quinta-feira de final de Maio.
Já sabia, antes de chegar ao Plano, que não poderia jantar no muito aprazível jardim. A temperatura e o vento impossibilitavam a opção, pelo que a alternativa era ficar numas das duas salas interiores. Uma delas, logo à entrada, é mais pequena, comprida e algo apertada, com um distanciamento entre mesas no limite. Foi onde fiquei, dado que a outra era ainda mais interior.
Vista do jardim, onde se pode jantar sempre que o tempo o permite (Foto:DR)
Sala de entrada (Foto:DR)
Sala interior e acesso a sala privada no andar inferior. (Foto:DR)
Esta ligeira apreensão começou a dissipar-se com a chegada do couvert, ou “o nosso momento português”, como referiu simpaticamente a empregada quando explicou que, dada a situação, não tinham a carta de comidas impressa, para evitar o manuseamento, e que funcionavam apenas com dois menus de degustação: um de 5 momentos (45€) e outro de 9 (70€). Voltando ao couvert… bom pão – com o toque azedinho, que tanto aprecio, característico da fermentação lenta (era da Gleba, segundo receita do chef) -, azeitonas de qualidade superior, um presunto de Chaves de 24 meses com uma elegância e profundidade de sabor que desconhecia, um azeite fresco, verde e apimentado, e um agradável queijo de ovelha de pasta mole ligeiramente queimado na chama. Se todos os couverts fossem assim, teríamos todos muito a ganhar.
O Chef Vítor Adão nasceu numa pequena aldeia de Chaves rodeado de pessoas que cultivavam e colhiam os produtos, cozinhavam e conviviam à mesa. É de lá, ou melhor, da região, que traz vários desses ingredientes que serve e transforma, como os enchidos, as carnes frescas e mesmo vegetais como batatas (de qualidade ímpar!) ou cebolas. Adão, nunca perdeu esse lado transmontano, tal como mantém (até com uma pontinha de orgulho) a pronúncia nortenha, apesar dos vários anos que já leva em Lisboa. Com tudo isto, não seria de espantar que embora exponha, e bem, uma certa sofisticação nos seus pratos, seja possível vislumbrar neles um lado mais rústico, bem como o seu ADN ligado à terra.
Por exemplo, logo na primeira entrada, do menu de cinco momentos que escolhi, o molho de salmonete não tinha aquele aveludado como mandam as bases da escola francesa. De facto, sentia-se uma ligeira textura (provavelmente da trituração do fígado do peixe) e tudo bem, porque é nessa parte que se concentra o sabor e este estava bem presente. Mais ainda, combinava a preceito com as duas pequenas gambas da costa, os pedaços de cavala e a folha do gelo que dava frescura e um toque crocante à proposta.
De igual modo, para acompanhar o incrível prato de pescada, com ouriço do mar e pickles de vegetais, a opção recaiu numa esmagada de batata, com pedaços ainda grosseiros. Mais uma vez agradou-me esse lado “raiz” combinado com outro mais palaciano. Porém, fantástico mesmo era toda a congregação de sabores e contrastes. E se é um facto que o gosto assertivo do ouriço do mar se sobrepunha um pouco ao da pescada, ou que o avinagrado dos pickles e da esmagada entrassem na luta, a verdade é que tudo aquilo acabava por compor uma complexa e agradável sinfonia, como numa cena de um filme de Kusturica.
O prato de carne era uma vitela, com nabo em puré e em pequenos pedaços. Não via um naco de vitela num restaurante mais aprimorado desde que a moda da carne maturada de sabor intenso o afastou das suas cozinhas. Porém, de tempos em tempos, sabe bem apreciar a delicadeza da carne de um animal mais novo, quer pela textura sedosa, quer pelo paladar. Sobretudo, quando tratada por alguém como Vítor Adão, que a marcou bem na grelha de um lado, para caramelizar os sucos, deixando-a crua no outro, de forma a apreciar-se a sua delicadeza. Mas, o talento do chef esteve também na restante composição do prato: nos nabos (com um toque fumado?), que me remeteram para um cozido à portuguesa, no deleitoso jus de vitela, no toque de laranja, bem como nas crocantes e frescas folhas de alface romana.
A sobremesa, a finalizar, foi igualmente um momento feliz e bem pensado, mais para o subtil do que para o conventual tiro no fígado. Que bem combinaram aquelas fatias finas de abóbora crua, junto com um merengue italiano, ananás caramelizado, telha de mel e um gelado de queijo da serra bem delicado – é que o cavalheiro pode ter a sua costela mendinha em Chaves, mas isso não significa que não possa ter um olho em Copenhaga e outro em Londres.
Gamba da costa e cavala (Foto:DR)
couvert “momento português” (Foto:MP)
Pescada, esmagada de batata, ouriço do mar (Foto:MP)
Vitela, puré de nabo e trufa (Foto:MP)
Abóbora, merengue, ananás caramelizado e gelado de queijo da serra (Foto:DR)
(Foto:MP)
(Foto:MP)
No capítulo dos vinhos, a carta era curta, com apenas 26 referências (3 espumantes, 11 brancos, 2 rosés, 9 tintos e 1 generoso), composta maioritariamente por referências de pequenos produtores, com uma ou outra pérola, mas sem ser propriamente excitante no seu conjunto. Saúde-se, no entanto, os preços bastante razoáveis e as várias possibilidades de ter diversos deles a copo, ainda que tal não venha explicito na carta. Foi assim que pude beber o Vadio 2019 – um branco da Bairrada do enólogo e neste caso também produtor Luís Patrão (sempre um valor seguro – elegante, fresco e de muito boa fruta) e um achado do Vale da Capucha (Lisboa, Sub-região de Torres Vedras), o Vinha Teimosa 2014, um portentoso tinto cheio personalidade e frescura. O primeiro, acompanhou bem os pratos de marisco e peixe e o segundo, o de vitela. Ambos estavam marcados na carta a 25 euros, tendo cada copo ficado a 5 euros.
Em relação ao serviço, houve um ou outro desacerto (menor) e alguma lentidão nos primeiros momentos, porém, sempre compensado com uma genuína intenção de servir com simpatia e profissionalismo.
Uma nota final: no início, quem atendeu explicou que o menu de nove momentos incluía “o nosso famoso carabineiro”. Ainda hesitei, mas tive receio que o menu fosse demasiado longo para um primeiro jantar de pós-confinamento e acabei por escolher o mais curto, que não o incluia. Não sei se por ter salivado ao ouvir a palavra “carabineiro” ou porque talvez tenha sido reconhecido a meio do jantar (mesmo tendo marcado mesa noutro nome, como faço habitualmente), a determinada altura, o chef Vítor Adão surgiu com o famoso prato. Dado ter sido uma gentil oferta – e não era de pequena conta – não vou tecer grandes considerações. Deixo apenas à vossa imaginação como poderá resultar um dos reis dos nossos mares, com os sucos da cabeça, umas gramas de caviar, uma bisque e um creme de batata voluptuoso. Simplesmente pornográfico. Ooops, disse que não ia tecer grandes considerações. Bom, se acharem que o episódio teve influência, podem retirar meio ponto aos 17.5 da classificação abaixo.
Carabineiro (Foto:DR)
Pagou-se por esta refeição, 57 euros. O preço poderá aproximar-se ou ultrapassar os 100 euros caso se adopte o menu de 9 momentos (70€).
Rua da Bela Vista à Graça, 126, Lisboa, +351 933404461 reservas@planorestaurante.com
Horário: devido a algumas restrições ainda impostas pela pandemia os horários e dias de abertura podem variar. Para este efeito, consulte o site do restaurante.
Classificação. Cozinha. 17.5; Sala. 17; Vinhos.15.5
Texto publicado originalmente na Revista de Vinhos nº179 (Junho 2021). Fotos: retiradas Instagram do restaurante (DR) e Miguel Pires (MP).
Faz pouco mais de um ano, escrevi aqui a primeira critica após o confinamento, que coincidiu também com a minha primeira visita a um restaurante depois da fase inicial da pandemia. Recordo a apreensão dos clientes na sala, o desconforto e alguma insegurança no atendimento feito de máscara. Passados então 12 meses, a situação pandémica não terminou, mas nota-se outra confiança em boa parte das pessoas, como pude constatar ao observar uma certa euforia nas ruas, quando me deslocava para o restaurante, numa quinta-feira de final de Maio.
Já sabia, antes de chegar ao Plano, que não poderia jantar no muito aprazível jardim. A temperatura e o vento impossibilitavam a opção, pelo que a alternativa era ficar numas das duas salas interiores. Uma delas, logo à entrada, é mais pequena, comprida e algo apertada, com um distanciamento entre mesas no limite. Foi onde fiquei, dado que a outra era ainda mais interior.
Esta ligeira apreensão começou a dissipar-se com a chegada do couvert, ou “o nosso momento português”, como referiu simpaticamente a empregada quando explicou que, dada a situação, não tinham a carta de comidas impressa, para evitar o manuseamento, e que funcionavam apenas com dois menus de degustação: um de 5 momentos (45€) e outro de 9 (70€). Voltando ao couvert… bom pão – com o toque azedinho, que tanto aprecio, característico da fermentação lenta (era da Gleba, segundo receita do chef) -, azeitonas de qualidade superior, um presunto de Chaves de 24 meses com uma elegância e profundidade de sabor que desconhecia, um azeite fresco, verde e apimentado, e um agradável queijo de ovelha de pasta mole ligeiramente queimado na chama. Se todos os couverts fossem assim, teríamos todos muito a ganhar.
O Chef Vítor Adão nasceu numa pequena aldeia de Chaves rodeado de pessoas que cultivavam e colhiam os produtos, cozinhavam e conviviam à mesa. É de lá, ou melhor, da região, que traz vários desses ingredientes que serve e transforma, como os enchidos, as carnes frescas e mesmo vegetais como batatas (de qualidade ímpar!) ou cebolas. Adão, nunca perdeu esse lado transmontano, tal como mantém (até com uma pontinha de orgulho) a pronúncia nortenha, apesar dos vários anos que já leva em Lisboa. Com tudo isto, não seria de espantar que embora exponha, e bem, uma certa sofisticação nos seus pratos, seja possível vislumbrar neles um lado mais rústico, bem como o seu ADN ligado à terra.
Por exemplo, logo na primeira entrada, do menu de cinco momentos que escolhi, o molho de salmonete não tinha aquele aveludado como mandam as bases da escola francesa. De facto, sentia-se uma ligeira textura (provavelmente da trituração do fígado do peixe) e tudo bem, porque é nessa parte que se concentra o sabor e este estava bem presente. Mais ainda, combinava a preceito com as duas pequenas gambas da costa, os pedaços de cavala e a folha do gelo que dava frescura e um toque crocante à proposta.
De igual modo, para acompanhar o incrível prato de pescada, com ouriço do mar e pickles de vegetais, a opção recaiu numa esmagada de batata, com pedaços ainda grosseiros. Mais uma vez agradou-me esse lado “raiz” combinado com outro mais palaciano. Porém, fantástico mesmo era toda a congregação de sabores e contrastes. E se é um facto que o gosto assertivo do ouriço do mar se sobrepunha um pouco ao da pescada, ou que o avinagrado dos pickles e da esmagada entrassem na luta, a verdade é que tudo aquilo acabava por compor uma complexa e agradável sinfonia, como numa cena de um filme de Kusturica.
O prato de carne era uma vitela, com nabo em puré e em pequenos pedaços. Não via um naco de vitela num restaurante mais aprimorado desde que a moda da carne maturada de sabor intenso o afastou das suas cozinhas. Porém, de tempos em tempos, sabe bem apreciar a delicadeza da carne de um animal mais novo, quer pela textura sedosa, quer pelo paladar. Sobretudo, quando tratada por alguém como Vítor Adão, que a marcou bem na grelha de um lado, para caramelizar os sucos, deixando-a crua no outro, de forma a apreciar-se a sua delicadeza. Mas, o talento do chef esteve também na restante composição do prato: nos nabos (com um toque fumado?), que me remeteram para um cozido à portuguesa, no deleitoso jus de vitela, no toque de laranja, bem como nas crocantes e frescas folhas de alface romana.
A sobremesa, a finalizar, foi igualmente um momento feliz e bem pensado, mais para o subtil do que para o conventual tiro no fígado. Que bem combinaram aquelas fatias finas de abóbora crua, junto com um merengue italiano, ananás caramelizado, telha de mel e um gelado de queijo da serra bem delicado – é que o cavalheiro pode ter a sua costela mendinha em Chaves, mas isso não significa que não possa ter um olho em Copenhaga e outro em Londres.
No capítulo dos vinhos, a carta era curta, com apenas 26 referências (3 espumantes, 11 brancos, 2 rosés, 9 tintos e 1 generoso), composta maioritariamente por referências de pequenos produtores, com uma ou outra pérola, mas sem ser propriamente excitante no seu conjunto. Saúde-se, no entanto, os preços bastante razoáveis e as várias possibilidades de ter diversos deles a copo, ainda que tal não venha explicito na carta. Foi assim que pude beber o Vadio 2019 – um branco da Bairrada do enólogo e neste caso também produtor Luís Patrão (sempre um valor seguro – elegante, fresco e de muito boa fruta) e um achado do Vale da Capucha (Lisboa, Sub-região de Torres Vedras), o Vinha Teimosa 2014, um portentoso tinto cheio personalidade e frescura. O primeiro, acompanhou bem os pratos de marisco e peixe e o segundo, o de vitela. Ambos estavam marcados na carta a 25 euros, tendo cada copo ficado a 5 euros.
Em relação ao serviço, houve um ou outro desacerto (menor) e alguma lentidão nos primeiros momentos, porém, sempre compensado com uma genuína intenção de servir com simpatia e profissionalismo.
Uma nota final: no início, quem atendeu explicou que o menu de nove momentos incluía “o nosso famoso carabineiro”. Ainda hesitei, mas tive receio que o menu fosse demasiado longo para um primeiro jantar de pós-confinamento e acabei por escolher o mais curto, que não o incluia. Não sei se por ter salivado ao ouvir a palavra “carabineiro” ou porque talvez tenha sido reconhecido a meio do jantar (mesmo tendo marcado mesa noutro nome, como faço habitualmente), a determinada altura, o chef Vítor Adão surgiu com o famoso prato. Dado ter sido uma gentil oferta – e não era de pequena conta – não vou tecer grandes considerações. Deixo apenas à vossa imaginação como poderá resultar um dos reis dos nossos mares, com os sucos da cabeça, umas gramas de caviar, uma bisque e um creme de batata voluptuoso. Simplesmente pornográfico. Ooops, disse que não ia tecer grandes considerações. Bom, se acharem que o episódio teve influência, podem retirar meio ponto aos 17.5 da classificação abaixo.
Pagou-se por esta refeição, 57 euros. O preço poderá aproximar-se ou ultrapassar os 100 euros caso se adopte o menu de 9 momentos (70€).
Rua da Bela Vista à Graça, 126, Lisboa, +351 933404461 reservas@planorestaurante.com
Horário: devido a algumas restrições ainda impostas pela pandemia os horários e dias de abertura podem variar. Para este efeito, consulte o site do restaurante.
Classificação. Cozinha. 17.5; Sala. 17; Vinhos.15.5
Texto publicado originalmente na Revista de Vinhos nº179 (Junho 2021). Fotos: retiradas Instagram do restaurante (DR) e Miguel Pires (MP).
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