James Corden, humorista e apresentador de TV, engraçado e bonachão, celebridade mundial, foi banido de fazer suas refeições no Balthazar, tradicional restaurante nova-iorquino. Keith McNally, proprietário do espaço, veio ao Twitter – a praça pública da era digital – tornar o aviso oficial no estilo “aqui ele não pisa mais”.
“Homem cretino”, segundo palavras de McNally, Corden foi o “cliente mais abusivo” a se sentar para comer ali, disse o empresário. O que ele fez não foi nada de novo no palco das aberrações que os restaurantes por vezes se convertem: foi desrespeitoso e gritou com os empregados, pediu bebida de graça para corrigir um erro da cozinha, ameaçou fazer comentários negativos na internet.
Quem estava em volta deve ter passado por aquele momento constrangedor que é ver alguém fazer algo moralmente abominável mas não estar na situação para poder intervir de forma mais direta. Esse tipo de comportamento agressivo e excruciante, no entanto, é muito comum nos restaurantes.
Mas não falo só da mesa do lado. Todo mundo tem um amigo James Corden com quem sai pra almoçar ou jantar de vez em quando. Aquele que está contando algo cheio de humor, mas que faz uma pausa constrangedora para reclamar duramente com a empregada sobre um pedido, ou que simplesmente levanta o copo vazio da mesa em um claro aviso que necessita de outra bebida, sem parar e olhar o empregado no olho, dizer “por favor”, “obrigado”.
Que chama garçom com assobio, que interrompe toda vez que ele está explicando alguma coisa, que faz comentários sarcásticos sobre o atendimento. Sim, amigos, há uma legião de James Cordens à solta pelos restaurantes do mundo. E eles são um efeito de uma sociedade que vê as pessoas que as estão servindo como mercadorias.
Na escala de quem paga e quem recebe, existe uma hierarquia: quem serve (e recebe por isso) está em uma situação inferior à de quem paga para ter a comida na mesa. Trata-se de uma troca, um serviço: o prato, o guardanapo, a comida e o empregado de mesa têm uma mesma representação prática daquela transação comercial desprovida de humanidade e sentimentos.
Aliás, essa desumanização da figura de quem atende é que propicia esse sentimento de superioridade e de poder, de “direito” de reclamar, de “exigir” que tudo corra bem. Esperamos do garçom da nossa mesa o mesmo que esperamos da adega climatizada ou do ar condicionado: que funcione, que cumpra aquilo para o que foi designado, que seja eficaz.
“Eu respeito os restaurantes. Eu respeito as pessoas. Então, por que tantos clientes não me respeitam quando estou vestido com um uniforme de garçom? A resposta é simples: muitos clientes não acreditam que os garçons sejam profissionais e, portanto, não merecem seu respeito”.
O texto é do blog Food Wolf, que traz “insights de uma profissional de restaurantes”. Brooke Burton-Luttmann já trabalha no setor há algum tempo e escreve suas experiências na sala. Ela conta diversas situações e escreve notas muito interessantes sobre quem vive esse mundo de dentro, com um olhar que não temos.
“Como empregada de mesa e bartender, espera-se que eu seja amigável, cortês e habilidosa no meu trabalho – independentemente de quão mal meus clientes me tratem. Se saúdo uma mesa com um sorriso e eles me olham com ódio, devo fingir que a atitude deles não me afeta. Se um hóspede esbraveja porque se sente desconfortável por não entender o menu, sou obrigada a ter empatia e responder com gentileza. Se um cliente me interromper enquanto estou ajudando outro hóspede, sou obrigado a defender o direito do outro cliente ao serviço, mantendo uma boa comunicação com o impaciente. Se sai da cozinha um prato que um convidado em particular não gosta, espera-se que eu me desculpe e acalme sua raiva – independentemente de ser eu a acusada de tentar intencionalmente arruinar sua grande noite.”
No que Burton-Luttmann escreve, são muito correntes as situações de falta de respeito, de grosserias e até agressões. De uma maneira geral, e de forma muito equivocada, passamos a nos acostumar com isso, a aceitar que esse tipo de comportamento possa ser entendido como normal, corriqueiro, tolerável. Não é!
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Curioso que muitos jornais ingleses trataram de repercutir o caso, em uma discreta tentativa de separar o trigo do joio e impedir que a pecha de “grosseiro” não cole nos conterrâneos de Corden (que é inglês). No Guardian, entretanto, uma boa reportagem tentou explicar por que tratar garçons mal, além de moralmente péssimo, é algo completamente contraproducente. Gritar, espernear, xingar não gera nenhum efeito positivo para o atendimento em si. E ainda cria marcas psicológicas e traumas péssimos para o atendente.
Uma das fontes da reportagem é Daniel Redhead, pesquisador do Instituto Max Planck de Antropologia Evolutiva em Leipzig, para quem, nos restaurantes, as hierarquias são formalizadas e fixas, o que pode explicar o fenômeno do parceiro de jantar aparentemente genial que se torna tóxico quando o garçom aparece. Ele diz:
“Os garçons podem ser considerados como tendo um papel subserviente e onde a clientela pode ter poder sobre eles. Essas assimetrias de poder podem levar certas pessoas a agir de forma mais dominante – comportando-se de forma mais grosseira ou egoísta, e sendo manipuladora – porque acreditam que essa estrutura hierárquica clara legitima tal comportamento e não acreditam que terão repercussões por suas ações”
Outra informação trazida pelo jornal inglês fala de quem se comporta assim geralmente possui riqueza extrema, um emprego de alta potência ou fama, que ajudam a aumentar a temperatura dessa sensação de invencibilidade— uma pesquisa citada diz que 4% agem assim porque sabem que seus atos não serão punidos, e porque sentem algum prazer narcisístico nesse tipo de tratamento.
Geralmente, as pessoas tendem a atribuir seu próprio comportamento rude a se sentirem estressadas, doentes ou sobrecarregadas, e que fatores circunstanciais são provavelmente mais significativos do que a personalidade para determinar se um uma ida ao restaurante será civilizada ou não. Como escreve Burton-Luttmann:
“O mundo está cheio de pessoas raivosas e infelizes que não usam palavras com civilidade, bondade e respeito. Elas estão muito ocupadas perpetuando a miséria em suas vidas espalhando tanto ódio e raiva quanto possível. Quem sou eu para esperar algo mais do que pagamento (que é facilmente negado) em troca dos meus serviços?”
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Claro que às vezes as coisas descambam para um “piti”, para uma atitude que vai além dado o momento e as condições emocionais dos envolvidos, como no caso de Corden. Mas sempre penso que isso também é algo de personalidade, sim, de caráter. Aquela regra de ouro que meu pai me ensinou para observar como as pessoas tratam garçons, frentistas, vendedores e porteiros em seus cotidianos. Se as pessoas só sorriem e são simpáticas com pessoas em posição de poder ou de quem podem extrair algum benefício, desconfie.
Porque tratar com humanidade quem está te servindo é importante. Dar gorjeta para o entregador que pegou chuva na moto e cruzou a cidade colocando sua vida em risco para poder trazer uma pizza que, tomara, o ajude a pagar o leite do filho. Ser gentil, agradável, educado é quase um ato revolucionário nos dias de hoje em que as pessoas andam tão raivosas por aí. São tempos de pressão, de ansiedade, de stress.
Mas que nada justificam humilhar ou ser sarcástico com alguém que se aproxima de você com o cardápio nas mãos para ouvir o que você quer comer. Por isso, precisamos, sim, tirar o James Corden da mesa. Expô-lo, como muito bem fez McNally. Falo do humorista, claro, mas também daquele James Corden que é seu amigo, que divide a porção de batatas fritas com você, que te serve o vinho às gargalhadas por aquela história que vocês viveram há tempos atrás. Não normalize a grosseria dele, repreenda (de preferência na frente do garçom) o seu comportamento quando ele faltar com respeito, assuma a situação quando um problema aparecer no serviço (e eles aparecerão). Let’s make restaurants great again! Para nós, que adoramos comer neles. Mas sobretudo para quem está ali para tentar fazer algumas horas do nosso dia melhor. É retribuição que fala.
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