Critica Gastronómica

Kabuki Lisboa: ¡Hola, irasshaimase!

Se não conhecesse Kabuki de Madrid, onde estive há uns 15 anos, talvez torcesse o nariz ao facto de ser um restaurante de fusão. Porém, na verdade, o que deu mau nome ao termo fusão foi a mistura de ingredientes baratos que apelam aos instintos mais básicos do gosto. Ora, o que acontece no Kabuki de Lisboa é o oposto, uma fusão bem pensada e elaborada com sensibilidade por quem sabe escolher os melhores ingredientes e domina bem, quer a cozinha japonesa, quer a espanhola/mediterrânica.

O restaurante de Lisboa, aberto em Dezembro de 2021, foi o primeiro passo do grupo Kabuki fora de Espanha, onde têm várias unidades, duas delas com uma estrela Michelin, em Madrid e em Tenerife – além da do fundador Ricardo Sanz, no Hotel Wellington Madrid (Ver nota actualizada no final do texto). Ao expandir-se para a capital portuguesa, o grupo não poupou esforços nem investimento, começando pelo local: nas renovadas galerias Ritz, junto ao hotel; passando pela dimensão: três pisos com três conceitos complementares; pela arquitectura de interiores e decoração; terminando na equipa: jovem, mas experiente, pelo menos nos lugares chave, com o chef Paulo Alves na cozinha, Victor Jardim, na sala, e Filipe Wang, como sommelier.

Com Lisboa a festejar os Santos Populares, a frequência nos restaurantes gastronómicos nesta altura nunca é famosa. O Kabuki ainda fez algo para atrair a clientela, embarcando no espírito da época, à sua maneira. Quem chegava era convidado a tomar uma cerveja artesanal no bar e, depois, no restaurante, havia um menu temporário com quatro snacks, que iam de um miso de “caldo verde” a uma trilogia de nigiris de sardinha. Porém, nesse dia, o restaurante que alberga até 70 pessoas estava por minha conta e de pouco mais uma dezena de clientes, espalhados por duas meses, um ambiente muito diferente do de casa cheia, ao fim de semana. A falta de calor humano foi compensada com o lugar que escolhi ao balcão que me permitiu um contacto com os dois cozinheiros de serviço, os chefs Rui Sales e Markitos Martinez, o galego que veio do Kabuki de Madrid.

Antes de se aventurarem por um menu mais local, a proposta do Kabuki é um misto do que se encontra nas unidades de Espanha, além, claro, dos clássicos da casa mãe que são comuns entre todos. Pode-se escolher à carta – inclusive optar por propostas apenas japonesas – mas o mais indicado para uma primeira experiência no lugar e para ficar a conhecer o ADN da casa é o menu de degustação de 8 momentos (100€), que pode ser estendido (por +35€) de modo a incluir um prato de wagyu e uma segunda sobremesa. 

Acabei por eleger a degustação normal, pedindo, no entanto, para acrescentar uma das propostas de sardinha do tal menu especial de Santo António. O primeiro momento veio numa caixa “bento box” e continha seis snacks. O primeiro era uma mistura entre o korokke, o croquete japonês e a croqueta espanhola: fritura exemplar, sem deixar óleo na mão, massa crocante (envolta em panko) por fora, recheio cremoso de bechamel com aparas de atum por dentro. Nada mau, para começar, tal como o segundo, desta vez uma tempura de ostra com molho ponzu, igualmente com uma textura fantástica. Ainda de grande nível esteve a gyoza de porco com molho mirim e soja, tal como os delicados pickles de cenoura nabo e abóbora. Por fim, um mexilhão gratinado, com viciante molho holandês com um toque de kimchi.

Bento box com diversos snacks

De seguida veio um japonês usuzukuri de lírio com molho ponzu. Apenas três fatias bem finas daquele que é um dos melhores peixes brancos para comer cru, ligeiramente mergulhadas num salivante e bem acídulo molho ponzu. Ainda dentro do mesmo estilo de corte fino, voltámos à fusão com umas fatias de dourada com molho à bilbaína. Este molho, que é espécie de refogado com forte presença do alho e pimento em pó, é muito utilizado no país basco para acompanhar determinados peixes, como a pescada. Neste caso, a diferença era ser vertido sobre peixe cru – algo que funciona especialmente bem. 

 O “pa amb tomàquet” é um clássico com mais de vinte anos, que vem do início do Kabuki Madrid. Percebe-se o sucesso. A receita original catalã é basicamente pão esfregado com alho e tomate bem maduro e comido assim ou, por vezes, com umas fatias de presunto. Na versão “fusion” do kabuki, onde o umami está bem presente, o ingrediente principal é o atum, com umas fatias bem marmoreadas da gola (peça junto à cabeça, que supera a mais conhecida parte da barriga), tomate cru em cima, uns pedaços bem crocantes de pão, tudo ligeiramente pincelado com azeite e shoyu. 

O prato seguinte, tem uma história curiosa. Segundo Martinez, quando serviam carabineiro no restaurante de Tenerife, os clientes ingleses não gostavam de comer a cabeça, a parte com mais sabor do crustáceo. A solução foi servir o carabineiro laminado sobre o suco tépido da cabeça emulsionado e apenas com um ligeiro tempero de cebolinho, soja e gengibre. Só assim, o resultado já seria brilhante, porém, há ainda uma parte muito importante, o arroz, que vem ao lado, numa pequena taça. Ele foi apenas cozido e a qualidade era impressionante: bago grande, solto e cozinhado no ponto (disseram-me que era um arroz de topo da variedade koshihikari, cujo preço ronda os 10€/kg). A ideia era vertê-lo no prato e misturar tudo. O resultado? De ajoelhar, rezar e chorar por mais.

Ao quinto momento chegou outro clássico, “ovos rotos” com batata e tártaro de salmão. Partilho da opinião que um restaurante deste nível não deveria servir salmão – aliás, no original este prato é com atum e pode-se pedir dessa forma. Porém, é verdade que o peixe é de tal forma envolvido num molho picante que não deve fazer muita diferença o peixe escolhido, desde que seja gordo. Contudo, não havia nada a temer, a mistura do ovo e o peixe envolvidos naquele molho funciona muito bem. 

O prato extra do menu dos Santos Populares entrou após esta sequência. Era uma tosta de sardinha com foie gras e espinafres salteados. A sardinha era grande, gorda, limpa de espinhas, ligeiramente chamuscada e cheia de sabor, mas não fez a ligação que esperava porque o foie gras (cuit) não tinha a devida expressão.

De seguida, entrámos no capítulo do sushi, com um conjunto de nigiris servidos um a um. Eram todos de fusão, mas mais uma vez, de boa fusão. Se não vejamos: barriga de dourada com panceta de porco – pode haver melhor ligação? no pregado, a barbatana dorsal é a parte mais saborosa (junto com a cabeça) devido à gelatina rica em colagénio que entremeia com a carne. Agora imaginem um pequeno pedaço passado pelo Josper, ou seja, com um toque de fumo do carvão…  

Igualmente um absurdo de bom, era o nigiri de enguia grelhado na robata e pincelado com tare, um molho doce, indulgente, feito a partir do caldo do peixe; e o que dizer do atum, chamuscado num dos lados, mostarda de Dijon no meio e cru na outra ponta? A ideia é começar pela parte crua, depois pela da mostarda (que lembra o wasabi) e finalmente pela chamuscada. Traduzindo por miúdos: fui do Japão ao céu, com escala pelo mediterrâneo, em três mordidas. 

o desfile continuou no mesmo nível, de novo, com a parte da gola do atum, desta vez com um pouco de açúcar demera queimado – sem palavras – e com um nigiri de vieira. Mais uma vez um exemplar de primeira com um molho denso de balsâmico, soja e mel e um pouco de botarga de robalo no topo, resultou num contraste acídulo/doce de grande harmonia. E, para finalizar, veio um nigiri de carne, com um tártaro de rubia galega com a particularidade de o arroz ser frito.

Na sobremesa, o mochi (bolinho de massa de arroz gelatinoso) recheado com abóbora e queijo da serra e sementes caramelizadas do vegetal no topo, era pouco doce mas agradável, com sabores que nos são familiares. Contudo, faltou-lhe alguma alma – talvez porque o queijo ao ser misturado com nata fique um pouco neutro. Ainda neste campo e a finalizar, chegou uma gelatina de yuzu, com uma quenelle de chocolate branco com yuzu e baunilha bem denso. Não fazia parte do menu normal, por isso calculo que tenha sido uma oferta da casa – e fez a diferença, porque voltamos de novo a um nível superior, dada a boa definição de sabores e o contraste entre o gelado gordo e a acidez perfumada desse citrino fantástico, que é o yuzu.  

Os vinhos são uma aposta do Kabuki e a sua carta será provavelmente uma das melhores do país. Entre as mais de 400 referências, impressionou-me a quantidade de champanhes (70), com a maior parte proveniente de pequenos produtores (45), ainda que não falte também os das grandes casas (45). Esta aposta, junto com a de borgonhas, faz com que França preencha mais de 40% do portfolio, seguindo-se Portugal, com 23%. Também há uma boa selecção de rieslings alemães, sakes, vinhos de Jerez/Montilla Moriles e fortificados portugueses, nomeadamente a copo. Mas mais importante do que os números de referências é a curadoria, da responsabilidade do head sommelier Filipe Wang: por um lado, oferece uma grande escolha de vinhos que parecem ser os mais adequados para o tipo de cozinha; por outro, selecciona variadíssimos rótulos de diversas gamas que vão ao encontro dos enófilos, sejam eles filiados num tipo de enologia mais convencional, ou numa filosofia mais natural. 

Porém, para ter uma carta destas e fazer sair muitas destas referências é fundamental saber orientar o cliente e, além de Wang, gostei muito do aconselhamento do sommelier Pedro Escoto a quem solicitei-a escolha de três vinhos a copo, sendo que um deveria ser um jerez fino. Primeiro, mostrou entusiasmo, sem sobranceria, e confirmou o que eu já desconfiava: que a suavidade, mas ao mesmo tempo o toque seco e salino do fino, neste caso um Inocente Valdespino, casa muito bem com este tipo de comida. E, depois, porque acertou em cheio, também, nas outras duas escolhas: primeiro, com um branco de um produtor do Loire de que gosto muito, François Chidaine – o chenin blanc Les Argiles 2018, e depois com um menos evidente ploussard do Jura, Le Dos d’Achat, de Fabrice Dodane, um tinto de cor aberta, leve, mas com personalidade, que foi muito bem com a segunda parte do sushi.

Um restaurante meio vazio não é o ideal para avaliar o serviço, porém, foi o suficiente para perceber que também neste campo o Kabuki está bem servido, uma vez que a cordialidade e o profissionalismo de quem nos atendeu foram duas características presentes ao longo da refeição. 

Preço médio com vinho, à data (Julho 2022): 80/90€ por pessoa, ao jantar e à carta. Pagou-se pela refeição descrita, (menu de degustação, prato extra + bebidas): 154.50€. 

Rua Castilho, nº 77 a 77E, Lisboa. Terça a sábado: 12:30 a 15:00 e 19:30 a 00:00 (cozinha fecha às 22:30) Tel:212491683

Cozinha: 18; Sala. 17.5; Vinhos:18

Texto publicado originalmente na Revista de Vinhos Nº 392 (Julho). Fotos: Kabuki (entrada – retirada do Facebook do restaurante); Miguel Pires (restantes)

Actualização: No mais recente Guia Michelin Portugal e Espanha 2023, revelado em Novembro, o Kabuki Lisboa conquistou uma estrela, enquanto a casa mãe de Madrid perdeu a que tinha. Também, segundo o site do Kabuki, os restaurantes com a marca pertencentes ao grupo, são, além dos dois mencionados, o Kabuki Komori, em Valência.  

Co-autor do Mesa Marcada. Escreve sobre gastronomia no Público, Revista de Vinhos (crítica gastronómica) e em títulos internacionais como Cook Inc (Itália), Eater.com (EUA) e Gula (Brasil). É autor do livro “Lisboa à Mesa - Guia onde Comer. Onde Comprar”, com edições em português, inglês e espanhol (na Planeta).

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