Opinião

A Maritimidade Algarvia

por Pedro Bastos

Este ano, o evento espanhol dedicado à sustentabilidade marinha “Encuentro de los Mares (EDM) decidiu atravessar o Guadiana e desafiou-me para falar da nossa Ria Formosa. Em Espanha sabe-se que existe uma parte da costa portuguesa, virada a sul, que é especial e sobre a qual têm muita curiosidade. Aceitei de imediato o repto, mas achei que devia “contextualizar a coisa”, o que neste caso significaria falar de toda a costa Algarvia. Foi uma excelente oportunidade de partilhar com os nuestros hermanos algo que marca o nosso país – o nosso mar – e sentir o genuíno interesse de uma audiência composta por investigadores de ciências marinhas, chefs de cozinha “do mar” e representantes do setor da pesca e da fileira do pescado. Mais do que o próprio Mar e o ecossistema que ele engloba (peixes, paisagens e habitats marinhos e costeiros), achei que deveria abordar o mar também numa perspetiva “imaterial”, partilhando os nossos saberes, tradições, vivências e claro, o saudosismo português. No dicionário há uma palavra em que poderá caber tudo isto e que Tiago Pitta Cunha (Presidente da Fundação Azul) assertivamente trouxe para a narrativa da nossa “economia Azul”, e que se chama Maritimidade. 

Poderemos dizer que Maritimidade Algarvia é o Património Paisagístico do Mar e das suas entranhas (Rias), assim como a orla costeira. Falamos de algo material e palpável. Porém, também é o Património Imaterial, tão bem descrito por Maria Manuel Valagão (MMV) no livro “Vidas e Vozes do Mar e do Peixe” (VVMP), em que fui uma das “Vozes da modernidade”.

A organização do “Encuentro de los mares” escolheu o Vistas by Rui Silvestre, no Monte Rei resort, perto de Monte Gordo (Gordo, de tão abastado em peixe), próximo da Praia de Cacela Velha – o extremo este da Ria Formosa -, para escutar a nossa Maritimidade, após um brilhante almoço preparado pelo chef anfitrião, tendo como chefes convidados, João Rodrigues (Projecto Matéria), Marcos Nieto & Rafa García (Restaurante Cañabota, Sevilha). Estávamos exatamente onde deveríamos estar – perto da incrível Ria formosa. 

Os ecossistemas das rias Formosa e de Alvor 

Este cordão dunar com cerca de 50Km é interrompido na sua extensão, permitindo a passagem do mar e formando assim 6 Ilhas barreira de areia. São dunas arenosas que submergem do mar, e que permitem a criação de um ecossistema lagunar único através da água que fica retida do lado oposto ao mar, onde se encontram salinas, sapais, lagoas de água doce e salobra, bancos de areia, esteiros, zonas de aquacultura de peixes e bivalves. Esta diversidade de ecossistemas serve de habitat para um enorme conjunto de espécies vegetais, peixes e aves. Acresce o facto desta “lagoa natural” estar sujeita à entrada e saída de água do mar diariamente, em função das marés, ficando cerca de 80% do seu território a descoberto na baixa-mar. A renovação e circulação da água constante promove um fluxo rico de micronutrientes e oxigénio que são a base para o crescimento vegetal, e, por conseguinte, da restante cadeia trófica. Surgem também pradarias submarinas, onde habita a maior população mundial de cavalos-marinhos, e que servem também para outras espécies animais se reproduzirem. A oxigenação dos terrenos é essencial para o crescimento dos bivalves. Foi precisamente o Professor Catedrático Carlos Duarte – da direção técnica do EDM – biólogo marinho e oceanógrafo espanhol de maior projeção internacional, que atestou a riqueza singular da nossa Ria formosa: “ é o ecossistema no mundo com maior produtividade mundial por m2 para a Ameijoa-boa (Ruditapes Decussatus) – espécie de maior valor económico e gastronómico que só existe em 6 países. Também o choco-vulgar ( Sephia Officinallis) elege este ria como o local ideal para efetuar as suas posturas. 

O Algarve tem, no entanto, outra ria – a de Alvor, menos extensa, mas igualmente rica na produção de bivalves, quer de crescimento natural (berbigão), como outros que são “semeados” na ria (ostra, ameijoa-boa). Através de um vídeo da Nutrifresco, vimos Rui Ferreira (Ostricultor) mostrar-nos como ninguém uma grande parte da riqueza marinha desta ria, incluído um bivalve especial e raro de nome taralhão. Na periferia da Ria de Alvor é significativa a aquacultura de robalo e dourada nos “tanques de terra” – canais de água criados após escavação da terra, e por onde circula a água da ria. 

A Costa Vicentina

Ambas a rias fazem parte da costa virada a sul. Mas existe outro Algarve onde a costa encara de frente o Oceano Atlântico – chamada pelos pescadores de Costa Norte. Aqui, a água é mais fria e o vento é mais forte. Faz parte da zona do Barlavento (de onde sopra o vento). Também conhecida por Costa Vicentina, o seu Parque Natural encerra uma zona de enormes escarpas rochosas, com vegetação rasteira, varrida pelo vento, que penetra nas águas bastante mais agitadas e profundas. O ponto mais sudoeste da Europa – o cabo de S. Vicente, beneficia da proximidade ao canhão de S. Vicente – um canal rochoso subaquático com declive acentuado – para lhe trazer uma corrente de matéria orgânica vinda das profundidades abissais e que ao chegar à superfície se combina com a luz solar, criando condições ideais para o crescimento da microflora e microfauna marinha – o ponto de partida para o desenvolvimento das restantes espécies. Miguel Torga referia-se ao mar algarvio como sendo: “Um Mar luminoso, um mar que é outro mar (…)”. Parece que o brilhantismo poético é, na verdade, a expressão justa da natureza e da sua biologia.

Aqui nadam, junto à costa em ambiente natural, os robalos (apelidados de “selvagens”), os sargos, as douradas, todos perfumados por algas, perceves, mexilhões e vários caranguejos, que fazem das rochas a sua casa, tal como o safio e a moreia. Na fundura, habitam chernes, cantarilhos, pargos, tamboril e lagostas. E nas escarpas submarinas vive o peixe de “ S. Pedro”, a que os mais antigos chamavam alfaquete – o peixe-galo.

O Algarve de Ilídio de Sousa e de outros pescadores

E desde Sagres partimos para o mar das recordações, dos saberes e da história do Infante D. Henrique. Comecemos por uma estória – a de Ilídio Sousa (e da sua esposa) que sonhava ter o maior barco do porto de pesca da baleeira e conseguiu. Chamava-se Branca de Sagres. Um barco elegante, asseado, pintado de branco, e cuja tripulação regressava orgulhosamente da faina com peixe ainda “mole de vivo” (ou ás vezes vivo). Era “largar o aparelho, alar, tratar bem o peixe, rumar a terra”, nas suas palavras. Para este mestre, peixe fresco tinha que chegar à lota sem gelo. É que peixe com gelo, já não era realmente fresco, era gelado. Ilídio personificava o orgulho Algarvio na qualidade do peixe e do pescado da região e da forma como se fazia a pesca. Em várias cidades costeiras do Algarve, onde existiam lotas matinais (ex. Tavira, Quarteira, Lagos), dizia-se que peixe fresco da costa, era “aquele que dormiu no mar”. 

Mestre Elídio, pescador de Sagres e a sua mulher.

Porém, anos houve em que Ilídio e tantos outros pescadores Algarvios não se limitaram a pescar junto à costa. Aventuraram-se na descoberta de novos mares, e de pesqueiros ainda por explorar. De Sagres partia para o Gorringe (maciço montanhoso submarino situado a 120 milhas marítimas do cabo S. Vicente, rico em fauna e flora). Também “ ia a Marrocos”, nos seus outros barcos, anteriores à Branca. Estas viagens a águas Marroquinas, duravam entre 6 a 10 dias. Vinham carregados de chernes enormes, de cardeais (imperador), cantarilhos e safios gigantes.

 Próximos do peixe, distantes da família. Noites dormidas num barco. Aventuras numa época sem telemóvel, sem sites na internet para antever a meteorologia a cada minuto. Aventuras para recordar, olhando para o mar, todos os dias, no mesmo sítio. O sítio da contemplação, em que Ilídio e sua esposa pousaram para Vasco Célio (fotógrafo, coautor do livro VVMP). O herói sonhador e sorridente e esposa angustiada. Uma vida que outros algarvios do Sotavento conhecem bem, ou talvez ainda melhor. Foi da Fuzeta que partiram muitos jovens para a pesca do Bacalhau, em águas geladas. Tudo isto é Maritimidade Algarvia. É conhecer o mar como a palma das mãos. Veja-se o mapa da Toponímia da Costa Algarvia, feito pelo CCMAR (UAlg) que recolheu os nomes pelos quais os pescadores conhecem o território marítimo. O “mar dos Pargos”, ou o “limpo do Beliche”. Conhecem-no por cima e por baixo. Conhecem as zonas “limpas” e as zonas rochosas. As zonas do nada – do deserto liquido, e as zonas do tudo – da abundância de peixe e vida marinha. Há até o “pesqueiro dos Cabrões”. No mar há também disputas, desavenças, competições e agruras, e claro, muitas façanhas. Isto é Maritimidade.

Uma culinária que combina o melhor do mar e da terra

A Maritimidade Algarvia também está presente na culinária dos pescadores e deles muito tem passado para os hábitos da população. Combinavam o melhor de mar, com o melhor da terra – da sua, ou do vizinho. Trocava-se peixe acabado de pescar por hortícolas de produção local e biológica. No Barlavento, juntava-se Safio com ervilhas, pilados (caranguejo nadador) com papas de milhos (…). Fazia-se arroz, até com a espinha da moreia. No sotavento, “alimavam-se” os carapaus depois de salgados e cozidos. Um património gastronómico marinho singularmente reunido no livro de MMV – Vidas e Vozes. E as demais receitas de atum do Sotavento? Comia-se: a pele, e bochecha, a ventresca, o queixo (…). O atum será talvez o peixe mais preponderante no Sotavento Algarvio, onde ainda se encontram as duas últimas armações de atum ativas, entre Olhão e a Fuzeta. Em 1820 chegaram a ser 34 as “armadilhas” para caçar estes gingantes do mar ao longo de toda a costa Algarvia. Uma armação era mais do que uma grande jaula no mar estrategicamente colocada na rota dos Atuns e agarrada ao fundo marinho por âncoras enormes (muitas destas ainda se podem ver praia do Barril, em Santa Luzia). Uma armação era uma comunidade que vivia em torno da preparação das redes, da captura e da transformação do atum rabilho. Uma comunidade de famílias de pescadores que viviam num aglomerado populacional conhecido por Arraial. 

Há muito que o território marítimo algarvio alcançou um reconhecimento pela sua individualidade. Na segunda metade do século XVIII o Marquês de Pombal criara a Companhia Geral das Reais Pescarias do Reino do Algarve.

A semelhança de muitos momentos ao longo da história, refletimos sobre a abundância, escassez, ou até mesmo o desaparecimento das espécies marinhas. E em que ponto estamos hoje?

O mar do Algarve hoje – um território em risco e uma atividade ameaçada

Nos últimos 30 anos, das águas mais quentes do Sotavento Algarvio desapareceram o camarão de Monte Gordo (ou de Quarteira), as ferreiras, o carapau amarelo ou o pargo mulato. 

Será que migraram para o Golfo de Cádiz? Sabemos o quanto os camarões gostam de estuários, de zonas de fundo lamacento e do Guadalquivir que carrega a comida que eles tanto gostam.

Da fundura das águas de Sagres sumiram os cachuchos e os imperadores seguem-lhes o rasto. Os meros amarelos são cada vez mais raros e a pesca do cherne é cada vez mais difícil.

Uma nova lei europeia prepara-se para proibir a pesca em zonas entre os 400 e 1000 metros. Os principais pesqueiros algarvios para os crustáceos de profundidade (carabineiro, lagostim, camarão vermelho) e para as espécies de profundidade, como o cherne, imperador ficarão por isso vedados à pesca mais industrial de arrasto, mas também á pesca de palangre de fundo (mais seletiva e de base artesanal). Uma decisão radical que protege os habitats, mas que poderá exterminar a atividade piscatória, que depende destas zonas e que depende das espécies ali existentes, não apenas no Algarve, como em toda a costa portuguesa e europeia.

Hoje em dia, muitas são as medidas protetivas e as restrições à pesca. Faz sentido. Temos de preservar a natureza e temos sobretudo devemos deixá-la crescer e reproduzir-se a um ritmo adequado, que no mínimo deverá ser igual ao que consumimos. Há, por isso, períodos onde a pesca do cerco não pode capturar sardinha e o biqueirão. Períodos onde não se pode efetuar a pesca dirigida ao tamboril. Há defesos para a apanha manual do perceve, para as redes e armadilhas da lagosta, e durante todo o mês de Janeiro os arrastes do marisco são obrigados a parar, deixando sossegados os pesqueiros da gamba branca, o camarão vermelho e o carabineiro. 

Do rei das jaulas à mal amada ostra fina

Cultiva-se por isso nos mares. E o Mar do Algarve não é exceção. São várias e extensas as zonas aprovadas para aquacultura em offshore ao longo da costa Algarvia, que é como quem diz, aquacultura intensiva em jaula marinhas. Nestas zonas legalmente delimitadas crescem douradas, robalos, mexilhões e, imagine-se, até a própria amêijoa-boa. Crescemos a ver as ameijoas a serem “desenterradas” das rias algarvias e vemos agora os alevins a crescerem em laboratório que depois são colocados em gaiolas de redes para crescerem em pleno mar aberto. Em mar aberto engordam-se também os atuns. São “selvagens”, até terem sido capturados e estabulados numa jaula marinha durante 2 a 3 meses, onde são engordados, dia após dia. O rei dos mares, torna-se rei das jaulas.

Nas Rias sempre se cultivou ameijoas e ostras. A ameijoa algarvia, que sabe como nenhuma outra. A ostra cresce incrivelmente rápido. No século XX, depois de “exterminada” a ostra portuguesa (Cassostrea Angulata), recorreu-se á “ostra de Pacifico – (Cassostrea Gigas). Do Algarve para França e de França para o resto do mundo. Crescem rápido nas nossas rias, e engordam bem com a “sapiência” francesa. A mal amada ostra pelos portugueses é o pairing perfeito para champanhe e caviar em muitas paragens gastronómicas! Sente-se o perfume das nossas rias a muitas milhas de distância.

Um parque natural submarino na Pedra do Valado

Por último, do paraíso lagunar das rias algarvias, viajamos até um dos maiores recifes da costa continental portuguesa – Pedra do Valado. Falamos de um maciço rochoso subaquático que se encontra na costa, entre Carvoeiro e Albufeira, até uma profundidade de 50m e que é o habitat de cerca de 900 espécies marinhas. Diz-nos o CCMAR que são cerca de 700 invertebrados, 110 espécies de peixes e 75 de algas. Os pescadores estavam conscientes da riqueza deste mar. Desde há muito tempo, nesta zona, pesca-se salmonetes com fartura, pargos e parguetes, legítimos, capatões, sêmolas, sargos veados, bicas, todos únicos e de sabor incrível. 

E foi precisamente um grupo de pescadores locais a lançar o repto para se proteger esta zona. Criar um parque natural submarino – uma zona de proteção deste habitat, que para além de ser rico em a biodiversidade funciona também como “maternidade para os pequenos peixes”. Um processo “de baixo para cima” que graças ao CCMAR e à fundação Oceano Azul já está a aguardar decisão política por parte do Governo.

Depois de identificada a área a proteger, delineou-se zonas com diferentes níveis de restrições. Existirá uma zona de proteção total de cerca de 2Km2 – um autêntico santuário marinho, interdito a quaisquer atividades extrativas e não extrativas. Apenas os investigadores poderão mergulhar para monitorizar a evolução. Nas zonas de proteção parcial, a pequena pesca poderá operar, mas com maior monitorização e licenciamento prévio. 

Vivemos em tempos em que urge permitir regeneração dos ecossistemas marinhos. Depois de décadas de pesca intensa, interrupta, muitas vezes desregulada e sem controlo efetivo, algumas vezes descuidada, é hora de proteger e zelar pela natureza marinha. A enorme capacidade das tecnologias ao serviço da pesca, que sejam os meios mecânicos – sofisticação das embarcações, equipamento eletrónico e informático faz com que o homem tenha cada vez mais capacidade de esgotar os recursos. Dar tempo para a reprodução e crescimento das populações reprodutoras é crítico para equilibrar esta equação. Para isso é necessário sensibilizar a comunidade piscatória a não infringir as medidas protecionistas e zonas de defeso biológico. É preciso, cada vez mais, sensibilizar os cozinheiros e os chefs com maior projeção mediática a programaram os seus menus, contando com a calendarização da indisponibilidade dos peixes e mariscos sujeitos a medidas de proteção. É preciso que amplifiquem essa mensagem para a sociedade. Se queremos cada vez mais pescado natural (ou selvagem) capturado de forma seletiva, com artes de pesca artesanais, urge criar condições atrativas para o setor da pesca e atrair a juventude para a pesca artesanal, tornando-a numa atividade com viabilidade económica e socialmente valorizada. Estes são temas de todos os mares. Foram falados e discutidos no “Encontro de los Mares”, onde o mar Algarvio esteve presente, e a nossa Maritimidade também.

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Pedro Bastos é licenciado em Bioquímica pela Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade do Algarve; é proprietário da Nutrifresco, empresa especializada em produtos de pesca para restauração e hotelaria no mercado nacional e internacional, bem como da Peixe à Porta by Nutrifresco, dirigida ao cliente final. Pedro Bastos foi vencedor do Prémio Especial Maria José Macedo – Produtor / Fornecedor do Ano 2017, no âmbito dos Prémios Mesa Marcada. 

Fotos: Vasco Célio/Stills (excepto as do Encuentro de los Mares)

1 comment on “A Maritimidade Algarvia

  1. Teresa Tiago

    MUITO INTERESSANTE ESTE ARTIGO. ADOREI E APRENDI, UM POUCO MAIS SOBRE O MAR.

    Gostar

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