Desde que abriu em Julho do ano passado, o Pica Pau tem sido um êxito. Parece que o seu conceito de apresentar pratos do receituário tradicional, sem adaptações ou twists, mas sim com bons produtos bem cozinhados, atraiu muitos lisboetas e quem visita a cidade. Entre os postulados do restaurante está também o relacionamento com pequenos produtores e, para acentuar essa vertente, está a promover uma “agenda gastronómica”, com jantares temáticos que visam a valorização do nosso património nesta área. O primeiro da temporada decorreu no último sábado e foi dedicado às alheiras, tendo como mentor o chefe Nuno Diniz – actualmente radicado na aldeia transmontana de Sezelhe e grande conhecedor dos enchidos portugueses -, que trouxe até ao Pica Pau nada mais nada menos do que alheiras de 15 produtores para serem cozinhadas pelo chefe Luís Gaspar (que supervisiona este restaurante, assim como o Sala de Corte e o Brilhante, todos integrados no grupo Plateform) e pelo chefe residente Samuel Duarte e a sua equipa. A procura foi tanta, que os 56 lugares do Pica Pau ficaram logo reservados (40 euros por pessoa), obrigando a que se realizasse também um “almoço de alheiras” no mesmo dia, igualmente lotado.
Quando fui convidado para este jantar não nego que hesitei em aceitar, tal era a imponência da ordem de trabalhos. Provar nem que fosse um só bocado de 15 alheiras é obra. Mas apelei à metade transmontana do meu estômago (por via paterna) e lá fui, até porque sabia que Nuno Diniz iria ainda trazer de Trás-os-Montes as famosas batatas kennebec (só cozidas) e couve tronchuda para acompanhar as protagonistas, o que é como deve ser. É claro que poderiam também ser grelos, mas Nuno Diniz diz que nesta época invernal prefere as couves.
Quase todas as alheiras eram artesanais e transmontanas e foi muito interessante comparar não só os seus complexos sabores, como também a texturas. A ideia não era escolher um “vencedor”, e na minha mesa houve gostos para tudo, mas já agora digo qual a que preferi e porquê. Curiosamente, foi logo a primeira a ser servida, da produtora Maria do Carmo, de Montalegre, e gostei sobretudo do seu equilíbrio, sem excessos de pimentão ou pimenta, mais seca de gordura, com uma textura pouco pastosa, a sentir-se no dente a carne desfeita.

Creio que foi a primeira vez que provei alheiras cozinhadas no Josper. Foi a opção do restaurante, já que não tinha condições de as fazer em grelha de carvão, a maneira que Luís Gaspar, segundo me disse, teria preferido. “O que queríamos evitar a todo o custo era servi-las fritas”, sublinhou o chefe. Aliás, fiquei um pouco espantado como ainda há tanta gente em Lisboa – e provavelmente noutros pontos do país – que ignora o que são alheiras e como devem ser servidas. Não é só a fritura, são os acompanhamentos de batatas fritas, de ovo estrelado, de sei lá mais o quê. Fica aqui uma sugestão para fazê-las em casa, como eu faço, para quem não dispõe de grelha a carvão ou Josper. Coloca-se a alheira numa frigideira anti-aderente sem qualquer gordura, começando fria e controlando sempre a intensidade do lume, que nunca pode ir além do médio. Vai-se virando cuidadosamente até ficar com a pele vidrada (têm que ser de tripa senão rebentam logo) e não se picam, algo que confirmei com Nuno Diniz, deixando a gordura sair lentamente. Demora praí 20 minutos ou mais, mas no final tem-se uma alheira inteira (quando muito, há pequenos rebentamentos, que ficam tostados), estaladiça por fora, suave por dentro, preservando todos os sabores. Ora fiquem lá com esta preciosa recomendação do “chefe Calvão”, não precisam de agradecer.
Voltando ao Pica Pau, Luís Gaspar está satisfeitíssimo com o êxito da iniciativa e revela que a próxima será já no dia 1 de Março, dedicada à cabidela, que aliás é prato do dia no restaurante às sextas-feiras. E, ao longo do ano, o chefe promete muitas novidades, incluindo algum intercâmbio com restaurantes de outros países, sempre apostando na valorização do património gastronómico. Venham elas e haja estômago para as enfrentar condignamente.
Os 15 produtores presentes foram, na ordem de chegada à mesa: Maria do Carmo (Montalegre), Armindo Pereira (Codessoso), Angelina – Maria Angelina e João Ribeiro (Mirandela), Rosa e Nuno Diniz (Sezelhe), Irene César (Sendim), Idalina Pereira (Salto), Alheiras da Glória (Vila Flor), Assunção Rosinha (Boticas), Nosso Fumeiro (Paredes de Coura), Talho do Luís (Carregal do Sal), Elisa Augusta (Vinhais), Dário Mendes (Mogadouro), Manuel Duarte (São Vicente), Preciosa Canto (Morgade) e José Pereira (Póvoa).
Pica Pau
Rua da Escola Politécnica, 27, Lisboa
Tel. 212 698 509
Aberto todos os dias
0 comments on “De alheira em alheira no Pica Pau”