Almoçar ou jantar com o objectivo de escrever uma crítica gastronómica não é a mesma coisa do que passar um bom momento à mesa com a família ou com um grupo de amigos. Há quem consiga e veja vantagens nisso alegando, por exemplo, poder provar mais pratos. Já eu evito. Distrai-me do dever e temo não conseguir prestar a devida atenção nem às pessoas nem à comida nem às nuances que só se vêm quando estamos sozinhos, ou vá lá, com apenas uma outra pessoa.
Porém, há uns tempos, estando de fim de semana prolongado a norte com uma incursão (depois) à zona de Aveiro e com o prazo para a entrega do texto a apertar, percebi que teria de conseguir um lugar e condições de modo cumprir a tarefa – mesmo que tivesse que fazê-lo na companhia da minha mulher, das suas restrições (ela prova muito bem, mas não lhe apetece provar tudo) e de um traquinas de quatro anos com as esquisitices próprias da idade. Afinal, iriamos fazer várias refeições e não deveria ser difícil que uma delas pudesse ser validada para o efeito. Fácil, portanto. Ou… mais ou menos.
A primeira, um jantar na Casa da Calçada, em Amarante, onde, na altura, o Tiago Bonito (que entretanto saiu) acabava de lançar os novos menus de temporada, não contava. Foi óptimo, digno da estrela Michelin que ostenta, mas tinha sido convidado e, por regra, não escrevo críticas em que vou nessa condição.
No dia seguinte, a caminho de Guimarães, parámos para almoçar num lugar afamado, tradicional, famoso pelo bacalhau, pelo cabrito e carnes na grelha. O restaurante estava meio vazio e sem grande alma. O prato de bacalhau, com direito a diploma de vencedor de concurso na parede, tinha boa pinta, mas não estava extraordinário. À falta do cabrito (que tem dia marcado e não era aquela sexta-feira) pedi os filetes de pescada, que eram de bom porte, mas imperfeitos na fritura (devido à flacidez da polme), mas que ainda assim deixavam a léguas os croquetes do cozido, secos e meio sensaborões. A carta de vinhos, embora bem composta, boa parte deles tinha o preço rasurado, com outro valor a lápis acrescentado à frente, revelando, por um lado, a franqueza da conjuntura actual – o aumento de 10% a 30% nos preços – mas por outro, também, uma certa displicência (terão esgotado os tinteiros de todas as impressoras da zona de Felgueiras?). Como o nosso filho não estava nos seus melhores dias, nem ficámos para a sobremesa, foi pedir a conta e abalar.
À noite, tentámos um bistrot de um casal francês radicado em Guimarães, de que me deram boas referências. Acontece que quando liguei a reservar, percebendo que havia uma criança a bordo, logo nos demoveram de aparecer – o que até entendo, há lugares que não são mesmo adequados a crianças. No Sábado, partimos em direcção à Costa Nova, aprazível localidade costeira, próxima de Aveiro. Umas saborosas lulinhas fritas e um belo pregado grelhado com competência no restaurante por cima do mercado local poderiam servir de base para uma escrita mais expandida, porém o petiz estava endiabrado e acabou tudo por ser deglutido meio a correr. Já à noite, no bonito e confortável hotel de uma conhecida marca de porcelanas, o desapontamento com um “leitão à chef”, mais para o elástico do que para o crocante na pele, levou-me a querer esquecer o momento.
No Domingo, a ideia inicial era ir almoçar à Bairrada, todavia acabámos por procurar uma solução em Aveiro. O Salpoente, do chefe Duarte Eira, estava há muito na agenda, mas por questões logísticas (i.e. criança a bordo) achámos melhor procurar um lugar com uma cozinha menos autoral. Sem referências, fizemos o que um turista faz, recorremos ao google em busca de lugares, mas nada de muito entusiasmante ou que cumprisse os critérios que pretendia apareceu.

Salvou-nos, numa caminhada pela cidade, o momento em que passámos em frente a O Molicieiro, um restaurante antigo, com um ar autêntico e cuidado, que me pareceu frequentado maioritariamente por locais. Creio ter visto uma referência ao Guia Michelin na porta, ou então foi mesmo online. “Casa familiar especializada em peixe fresco e grelhado. Possui uma esplanada na rua, um bar privado e uma sala de jantar simples, com cozinha à vista e uma montra”. A descrições dos inspectores do guia vermelho nunca foram brilhantes (como dá para perceber) mas houve ali algo, talvez uma certa nostalgia, que nos atraiu. Ainda assim, entrámos com expectativas moderadas e preparados para o que desse e viesse, até porque a reacção a um casal com uma criança nem sempre é a melhor. Além daquelas impressões, outro bom sinal veio da grelha: o aroma. E, claro, também ajudou o sorriso aberto de quem nos recebeu.
A carta do Moliceiro tinha o que o guia indiciava: carnes, bacalhau, peixes de proximidade e outros residentes do mar, prontos para uma passagem pelas brasas. Mas, também, pratos de tacho, nomeadamente: arroz de tamboril com gambas ou uma caldeirada de enguias que me deixou água na boca, mas para a qual não arranjei companhia. Um bifinho de frango e umas batatas fritas caseiras em palito acalmaram a fome ao cavalheiro de tenra idade e a minha meia dose com umas 5 lulas pequenas (10€) estavam “bem catitas” (uma expressão que roubo ao meu querido e falecido David Lopes Ramos, natural da região): grelhadas com competência, acompanhadas por boas batatas (sem serem divinais) e uns grelos, com um toque amargo muito ligeiro (que aprecio) e um pouco de alho, mas sem exagero. Porém, o mais importante foi ver a cara de felicidade da mãe do cachopo e como se deliciava com o bacalhau na brasa que tinha escolhido. Era suposto ser para dividirmos, mas o máximo que consegui foi tirar uma lasca ou outra e a parte mais baixa do final da posta, próxima da barbatana, cheia de colágeno. Foi o suficiente para entender o estado de nirvana dela perante o prato. Carne perfeita, a lascar, luzidia e saborosa, sem sinal de secura. A acompanhar, os mesmos grelos e batatas a murro de polpa bem amarela, estas sim, celestiais.
Gosto do sabor que marca da grelha deixa no bacalhau, nomeadamente na pele, o que depois de regado com um fio de azeite e algum alho torna a coisa num manjar dos deuses. Porém, não raras vezes, o corte ou um espécime inadequado, associado a tempo em demasia no carvão deitam tudo a perder. O que não foi o caso, pelo que quis saber qual o truque para a posta não ficar colada à grelha. “Às vezes também se agarra”, referiu um dos cozinheiros, com um sorriso meio envergonhado. Porém, um colega que passava, com ar mais experiente, logo corrigiu: “tem de ser gordo e da Islândia”. Pronto, ficou anotado.
Na parte doceira, uma agradável maçã assada, de calda suave, e um leite creme caseiro bem queimado, encheram-nos as medidas e foi o necessário para terminar a refeição em beleza.
Uma nota final para os vinhos. Mesmo dentro de uma certa simplicidade do lugar, poderiam dar uma retocada na carta, em termos de escolha e critério. Havia alguns rótulos do Dão, um ou outro da Bairrada (como os das Bágeiras, Avô Fausto, ou o Chumbado) e depois o habitual: Douro e Alentejo. No caso, não fez grande diferença, até porque tinhamos de se fazer à estrada e conduzir por mais de duas horas. Porém, senhores, não custa dar uma melhorada
Bom, o importante mesmo é que a clientela saiu satisfeita. A esposa, o marido e a criança. Aliás, o puto deve mesmo ter-se portado bem, porque ao escrever este texto, agora, passadas algumas semanas, não tenho recordação de ter aprontado alguma travessura. O que atesta, muito provavelmente, a qualidade efectiva do almoço.
Cozinha: 17; Sala:16.5; Vinhos:14
Preço médio com vinho: 20/25 euros
O Moliceiro: Largo do Rossio 6, 3800-246 AveiroHorário: Sábado a Quarta-feira: 12.00-15.30, 19.00-22.30. Encerra à Quinta. Telefone: 234 742 102
Texto publicado originalmente na Revista de Vinhos
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