Menu de Interrogação

David F. Jesus: “Quero ter um restaurante com três estrelas Michelin. Vivi nesse mundo, quero-o para mim!”

O “F”, de Ferreira, no meio do nome, serve para o distinguir do conhecido David Jesus, durante muitos anos “braço direito” de José Avillez no Tavares e no Belcanto, mas é bom que nos vamos habituando a este outro chefe, que tem causado sensação no seu restaurante Seiva, em Leça da Palmeira (Porto), aberto há apenas 15 meses, apostando numa cozinha vegetariana, que lhe valeu inclusive ganhar o Prémio Especial Estrella Damm Destaque do Ano 2022, do Mesa Marcada, com uma sensacional subida de 103 lugares (de 117º para 14º) na lista dos restaurantes preferidos, através da votação de 235 jurados de todo o país.

Aos 27 anos de idade, David F. Jesus está hoje longe de Setúbal, onde nasceu, e na sua curta carreira já conta com experiências profissionais em prestigiados restaurantes portugueses e espanhóis. Numa família ligada à agricultura, mas sem ligações ao sector da restauração, ele descobriu, nas suas palavras, que a cozinha seria o seu “ponto de expressão”. Uma descoberta que atribui a uma doença de infância – “percebi que uma boa alimentação me fazia sentir melhor”, explica – e ao facto de muitas vezes ter que cozinhar para ele próprio, em casa. A Escola Superior de Hotelaria do Estoril seria o seu destino, que conjugou com estágios no Feitoria (Lisboa), então chefiado por João Rodrigues, e na Fortaleza do Guincho, com Vincent Farges e depois Miguel Rocha Vieira.

No fim do curso, decidiu enviar o currículo para o famoso DiverXO, três estrelas Michelin em Madrid, de David Muñoz, foi entrevistado e convidado para um estágio de nove meses. Voltou então para o Feitoria, onde ficou ano e meio, e depois seguiu para outro famoso três estrelas espanhol, o Quique Dacosta, em Denia, restaurante do chefe de mesmo nome. “Um dia o David Muñoz foi ao restaurante, viu-me e convidou-me para voltar ao DiverXO”, conta David F. Jesus. Aceitou e ficou lá três anos até voltar para Portugal, desta vez para o grupo Cambas, que detém no Porto restaurantes como o Paparico e a Cervejaria Brasão.

Apesar das condições serem boas, de estar ligado à área de Investigação & Desenvolvimento do grupo, decidiu que era altura de apostar no seu restaurante, mesmo sem investidores a apoiá-lo e tendo apenas 20 mil euros no bolso. Sem falar da pandemia do Covid, cujos efeitos sobre a restauração ainda se faziam sentir fortemente. A opção foi ficar no Porto, que cada vez lhe agradava mais, fazendo diferente, com uma cozinha à base de vegetais de que gostava e que apresentava as vantagens adicionais de começar a estar na moda, de ter poucos locais que a apresentassem com qualidade e criatividade e, não menos importante para quem estava a começar, tinha custos mais baixos. O êxito do Seiva foi grande e de um local que dava pequenos-almoços, almoços, lanches e jantares, com um ticket médio de 12 euros por cliente, evoluiu rapidamente para o restaurante que é hoje. O chefe do Seiva, David F. Jesus, é o entrevistado deste Menu de Interrogação, que conta com o patrocínio da cerveja Estrella Damm, no âmbito do seu apoio à gastronomia.

O que significou para si (e que bagagem lhe deu) trabalhar com David Muñoz no DiverXO, considerado um dos melhores e mais disruptivos restaurantes do mundo? 

Em primeiro dizer que o David é das pessoas mais apaixonantes que conheço e com quem já tive o privilégio de partilhar a cozinha. Ter feito parte da equipa do DiverXO foi algo que me marcou não só como cozinheiro, mas como pessoa. A forma como vejo e sinto cozinha não é mais como antes, não é tão romântica nem à volta de histórias… é feita de sentidos, sentimentos e muito sabor.


Mil-folhas de batata e creme de parmesão 

Primeiro o Arkhe e agora o Seiva, dois restaurantes “plant based”, tiveram as maiores subidas na lista anual do Mesa Marcada em dois dos últimos três anos, tendo sido, por isso, vencedores do Prémio Especial Estrella Damm Destaque do Ano 2020 e 2022. Se acrescentarmos o feito único da estrela Michelin do Encanto, isto significa a afirmação da cozinha vegetariana no panorama gastronómico português? 

Objectivamente, acho que a subida não se deve só ou apenas por ser “plant based”. Deve-se por fazermos diferente. A maior parte dos restaurantes novos não acrescenta valor ou novidade ao panorama, mantendo tudo sempre no mesmo padrão. Restaurantes como o Seiva, o Arkhe, Encanto e outros são disruptivos, únicos, têm identidade. Isso sim, é o factor. Claro que, inevitavelmente, como o mundo vegetal está mal valorizado, quando se consegue ter uma proposta de valor com base em plantas é muito mais apelativo.

Quais são as principais dificuldades em conceber um prato protagonizado por um vegetal em vez de um, mais habitual, por peixe ou carne?

Gestão de expectativas por parte do consumidor. As especiarias são plantas, como tal, não há razão para um prato vegetal não ter sabor. Depois, temos que ir aos sentidos, à emoção, ao produto. Construo pratos de base vegetal da mesma forma que com produtos animais. Até capricho mais nas plantas porque são mais sensíveis.


Coscorão de cebola 

“Se o que interessa para ter uma estrela Michelin é mesmo só aquilo que vai no prato, o Seiva é um estrela Michelin”, disse alguém. Acha que é uma afirmação lúcida ou de alguém entusiasmado, já depois de ter bebido uns copos? 

É uma afirmação lúcida. A proposta do Seiva tem muito sabor, técnica, visão, conceito, mundo e identidade. Já comi em restaurantes com estrela que não apresentam tanta cozinha como a que fazemos diariamente. Acredito que se fossemos pelo livro, sim, o Seiva era uma estrela, mas tendo em conta a realidade não acredito. Contudo irei trabalhar sempre com o mesmo propósito, fazer melhor a cada dia. O Seiva tem uma microestrutura e quando comecei, há ano e meio, o restaurante era um café e eu não tinha dinheiro para muito. Hoje, já somos nove pessoas a trabalhar, tem havido bastante investimento na sala e na cozinha e os detalhes de serviço começam a ser trabalhados, mas mantendo sempre o Seiva como, descontraído, informal, familiar, acolhedor, onde todos são recebidos com um abraço e um sorriso.

Enfrenta grandes problemas se quiser um fornecimento adequado de vegetais por parte de produtores portugueses?

Não. Nenhum. Acredito que quando trata de produtos de qualidade devemos reduzir ao máximo os intermediários, sejam eles vegetais ou animais, e dessa forma conseguimos o melhor possível. Acredito que a maior limitação seja ter o mesmo produto vegetal durante dois ou três meses. Isso não é viável. Mas também não é o que defendo. Mudo a carta do Seiva a cada três semanas a contar com as alterações nos produtos. O objectivo é fazer o melhor com o melhor. A falta de criatividade ou o conformismo nunca serão desculpas para não acompanhar a natureza.

Comparando com outros países que conhece, quais os vegetais, incluindo frutas, em que Portugal leva vantagem?

As couves, o arroz, melancia, laranja. Depende muito do clima durante o ano. Faço questão de provar o mesmo produto de origens diferentes para perceber o valor do produto em si sem me limitar ao território. Também vivi fora do país e sempre fui tratado como em casa. A questão primária é o sabor e a proximidade, por consciência sustentável. Para mim, que tenho um restaurante em Leça da Palmeira, é mais próximo comprar em Vigo do que no Alentejo. Muitas vezes, ao criarmos barreiras nacionalistas, esquecemos o território.

O Seiva caracteriza-se pelo ambiente informal e acolhedor

Parece-lhe que os seus clientes são mais de “nicho” ou serão antes apreciadores de todos os tipos de cozinha?

Noventa porcento dos meus clientes é omnívoro. Todos os meus clientes só vêm uma vez ao Seiva por ser “plant based”, todas as outras é porque gostaram muito da experiência e voltam para viver um momento especial independentemente do estilo de cozinha.

Sendo também proprietário do Seiva, considera que o tempo que dedica às tarefas de gestão afecta o seu trabalho como cozinheiro?

É muito duro. Quando a equipa era pequena tinha mais dificuldades, mas hoje já estou um pouco mais confortável. Todos os dias faço preparações e estou nos serviços. Vou a todas as mesas, falo com todas as pessoas, consigo tratar da gestão do restaurante e ainda consigo tempo para mim. Durmo pouco e sei que por vezes levo um ritmo nada saudável, mas quero muito vencer e entrego tudo o que tenho para que não falte nada.


Alho-francês cozinhado nas brasas com beurre blanc de tamarindo e amendoim

Parece-me uma pessoa determinada e ambiciosa. Projecta a sua carreira e dos seus projectos a médio/longo prazo? O Seiva é apenas um ponto de partida? 

O Seiva é o ponto de partida e quero levar o Seiva o mais longe possível. Acredito no valor das marcas e nos ideais que defendemos, contudo quero abrir outros restaurantes para aumentar o fluxo de capital até poder abrir aquele que considero o meu restaurante de maior expressão. Quero ter um restaurante com três estrelas Michelin. Vivi nesse mundo, quero-o para mim! Tenho 27 anos e muita vontade. A distância entre os sonhos e a realidade é a nossa atitude.

E a pergunta da praxe: qual seria a sua última refeição se soubesse que o mundo acabaria amanhã?

Sopa de pão do meu pai.  Caldo de cabeça de bacalhau, piso de coentros e alho, pão de ontem e ovo escalfado.

Patrocínio: 

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