Critica Gastronómica Restaurantes

Cura, um novo restaurante com entrada directa para a Primeira Divisão

Há poucas coisas mais interessantes e estimulantes nesta área do que encontrar um restaurante com um projecto bem concretizado, tendo à frente um chefe que pratica uma cozinha com personalidade e ambição. Foi isso que me aconteceu na semana passada quando me fui estrear, a convite, no Cura, o recém-inaugurado espaço do hotel Ritz Four Seasons Lisboa, de Pedro Pestana Bastos, que, a meu ver, entra directamente para a Primeira Divisão dos restaurantes da capital.  A sala de tamanho ideal, o modo com foi decorada e organizada – onde se destaca uma cozinha aberta e perfeitamente integrada – é complementada coerentemente com o trabalho de Pedro Pena Bastos e das suas equipas de cozinha e sala, onde é de sublinhar o rigor e a originalidade de pratos complexos, que nos desafiam e nos provocam a vontade de continuar a acompanhar a carreira deste jovem chefe de 30 anos que está a viver claramente um momento de grande evolução.

O Cura tem três menus. Um de 13 “momentos” – “Origens” – custa 120 euros; outro menor, “Meia Cura,” de sete “momentos”, fica em 85 euros, e ainda o “Raízes”, vegetariano, por 75 euros, também de sete “momentos”. Propuseram-me o mais extenso e não me fiz de rogado. O início do jantar foi logo empolgante. Se, por vezes, os “snacks” destes menus mais parecem sobras do que restou do dia anterior, neste caso foram três apontamentos de grande nível, com um coração de alface que, apesar de diminuto estava pleno de frescura e textura estaladiça, com pólen e sementes de girassol, seguido de uma mini-tarte de lírio cru com pimento em geleia, absolutamente extraordinária. Já não gostei do terceiro, um mini-tosta de pão de malte com barriga de porco, melão e sisho, com sabores algo confusos e sobrepostos. 

Nas entradas, seguiu-se uma enguia fumada com tomates cherry e um granizado de flor de sabugueiro. No original, seria uma ostra do Sado de quatro anos, mas ando a evitar este traiçoeiro bivalve sempre que posso nestes tempos conturbados. E a verdade é que a substituição resultou muito bem, numa mistura de sabores salgados, doces e fumados, com as diferentes temperaturas a colaborarem. Contudo, se tivesse de escolher um só dos 13 “momentos” deste menu, seria sem dúvida o que se seguiu: abóbora Hokkaido com cantarelos, pistácio e capuchinhas. Talvez o facto de Pedro Pena Bastos ser vegetariano de longa data tenha contribuído para esta perfeição, porque o equilíbrio conseguido foi fenomenal, com abóbora assada e ligeiramente tostada a jogar genialmente com a maciez dos cogumelos, tudo envolto dos outros elementos verdes, numa deliciosa espuma. Grande prato.

Outro prato que me surpreendeu foi a mariscada, com gamba rosa praticamente crua, percebes e ovas de truta com uma coalhada de alho verde e creme de tremoço. Ora eu não costumo gostar destas misturas de lácteos com mariscos, mas a verdade é que a coalhada transmitia muito bem os sabores e adicionava uma suave e cremosa doçura ao prato que contrastava belissimamente com os salgados dos elementos marítimos. 

Estas primeiras entradas já me tinham colocado no céu, ajudado pela criteriosa escolha de vinhos da escançã Gabriela Marques, que tinha servido inicialmente o óptimo espumante bairradino Luiz Costa com os “snacks” (deixando-me a meio do cocktail “Amarguinha Sour”, que me estava a saber muito bem…), ao qual se seguiu um alvarinho Granit Cru 2017, de Luís Seabra, companheiro ideal destes “momentos”. Mas se eu estava no céu, caí de repente à terra. Um ovo foi o culpado. Vinha com a gema curada – moda que não aprecio particularmente -, quinoa, batata de Verão, queijo de São Jorge e trufa de Verão. Prometia muito umami, mas revelou-se banal e pesado, com este tipo de trufa (que raramente acrescenta o que quer que seja) a passar ao lado. Foi o pior da noite. 

Mas rapidamente o nível recuperou, porque estavam soberbas umas tiras de lulas quase cruas, a fazer o papel de massa, envolvidas com um molho de avelã, bergamota, manteiga torrada de algas (abri uma excepção à minha antipatia pelos “legumes do mar” porque era apenas uma pequena nota numa composição maior) e caviar oscietra, com um equilíbrio perfeito entre os diferentes elementos. Mais um grande momento, desta vez acompanhado por um Viognier algarvio, de 2017, do Barranco Longo, cuja pouca complexidade não me agradou especialmente.

Preferia que o “momento do pão” tivesse vindo um pouco mais cedo, eventualmente a seguir à mariscada, e não nesta altura do jantar, mas compreendo que quando ele é tão bom e ainda estamos com apetite corremos o risco de nos empanturrarmos logo no início da contenda. É que o pão de massa mãe, feito na casa, estava espectacular, assim como a manteiga envelhecida da ilha das Flores, o azeite verde de Tomar (produzido numa propriedade familiar de Pedro Pena Bastos) e uns crocantes de queijo da Ilha também muito bons e bonitos. Lá me contive, mesmo quando me perguntaram se queria mais….

O prato seguinte, pescada de linha, xerém de milhos e algas, dashibeurre blanc”, ficou incompleto, embora tenha apreciado devidamente o recurso a um peixe que raramente é utilizado nos restaurantes portugueses deste nível, num ponto muito bom e saboroso. Também o xerém e o dashi estavam muito bem, mas desta vez não consegui vencer a minha repugnância por algas e despi a pescada de umas pavorosas pipocas verdes que a cobriam, provando uma apenas para ficar logo enjoado. Julgo que eram elemento essencial no prato e assim não consegui apanhar o conjunto, que ficou um pouco simples de mais.

Chegaram então as carnes, primeiro sob a forma de um “borrego merino à colher”, desfiado numa curiosa e bem-sucedida mistura com marmelos, beldroegas e hortelã-da ribeira, com a menta a dar leveza ao prato sem se intrometer demasiado. Uma óptima evocação dos tempos em que Pena Bastos andou pelo Alentejo. O mesmo com as presas de porco preto alentejano que se seguiram, acompanhadas por umas interessantes cebolas assadas envoltas em argila, curcuma e tagetes. A carne estava muito bem cozinhada e foi uma maneira agradável de concluir os pratos salgados.

Nos vinhos, creio que depois de eu a ter lembrado da descoberta que me proporcionara de um Chardonnay da Quinta do Lagar Novo (Alenquer) servido na apresentação do último menu de trufas no Varanda, restaurante principal do Ritz Four Seasons, Gabriela Marques teve a gentileza de o servir, para meu gáudio. Com as carnes, vieram o tinto alentejano Azamor 2013, sem grande história, e um bem mais interessante Quinta da Curia Clefs D’Or 2011, feito na Bairrada por Carlos Lucas e Pascal Chatonnet.

Para a sobremesa, o sempre admirável DSF Moscatel Roxo, este de 2002, que acompanhou os figos com beterraba, lima e líquenes, bela homenagem do chefe pasteleiro Diogo Lopes à ”fruta da época”, seguindo-se ananás do Açores, com miso, sementes de abóbora e pimenta timut, que senti um pouco mais pesada. E ainda três curiosas mignardises de alfarroba e alho preto, ovo e mel e framboesa e lavanda, que abrilhantaram o café de filtro e cuja dose pequena e exacta evitou as tentações doces que por vezes estragam os finais de refeição.

O Cura nasce assim em plena tempestade, mas com todas as condições para vingar – bom chefe, boas equipas, bom ambiente, boa localização. E ainda com um trunfo extra que se revela quando se provam estes pratos e se conversa um pouco com Pedro Pena Bastos: com um chefe que, apesar da juventude, parece ter aprendido com as experiências que já viveu e está cheio de vontade de mostrar o que vale.

O novo restaurante do Ritz Four Seasons Lisboa tem entrada directa pela Rua Rodrigo da Fonseca

Cura

Hotel Ritz Four Seasons Lisboa, Rua Rodrigo da Fonseca

Tel: 213 811 401.

E-mail:cura.lis@fourseasons.com

Aberto para jantar de terça a sábado das 19h30 às 23h00

Fotos: Cristina Gomes

Nasceu em Lisboa em 1963. Licenciou-se em Comunicação Social pela Universidade Nova de Lisboa e trabalhou em diversos jornais (Semanário, Diário Popular e Diário de Lisboa) e, depois, na área de comunicação empresarial. Em 1997, começou a colaborar com a revista “Fortuna” na área de gastronomia e vinhos. Em 1999, criou a página “Boa Vida” para o “Diário de Notícias”, que coordenou até Janeiro de 2009, com algumas interrupções. Entre 2007 e 2019, foi coordenador do Projecto Gastronomia da Associação de Turismo de Lisboa e, nesse âmbito, director do festival gastronómico Peixe em Lisboa, continuando a escrever artigos sobre gastronomia e restaurantes em várias publicações.

2 comments on “Cura, um novo restaurante com entrada directa para a Primeira Divisão

  1. Artur Hermenegildo

    O Ceia era entusiasmante, pelo que este Cura me deixa com vontade de ir.

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  2. Ana Barbosa

    O Cura é, sem dúvida, um dos melhores restaurantes da capital. Prima pelo profissionalismo, amabilidade, bom gosto… e uma cozinha de excelência . A refeição da noite de passagem de ano foi absolutamente FANTÁSTICA. Parabéns, ao chefe, à sua equipa e ao Ritz Fourseasons! *****

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