Opinião Restaurantes

A comida cura

Ontem foi mais um dia estranho, de angústia acrescida, nestes dias de desconforto. Com um fuso horário de 3 horas, quando acordo cedo em São Paulo já Lisboa vai bem desperta e as notícias circulam a todo o vapor: mais um record de pessoas que sucumbiram ao vírus velhaco, uma mensagem de que tenho um amigo (afastado) nos cuidados intensivos e a novela das vacinas – os atrasos, os cancelamentos, os prioritários que não o são e os meus pais, octogenários, que tardam em sê-lo.

Como se não bastasse o governo resolve cancelar os voos de e para o Brasil até (pelo menos 14 Fev). Sim, podemos regressar num “voo humanitário”, desde que além do teste PCR, que já era obrigatório, façamos quarentena de 14 dias. É verdade que já há umas semanas tínhamos decidido adiar o regresso a Lisboa por (pelo menos) mais um mês, lá para finais de Fevereiro. Ainda assim e mesmo estando hospedado em família e no maior conforto, sinto-me um pouco sem pátria (é psicológico, eu sei, já passa).  

“Vamos almoçar?”, pergunta-me um amigo. “Vamos”, respondo. “Que tal irmos àquele mexicano novo?”. Estou há várias semanas meio enclausurado em casa com uma ou outra escapada para fora da cidade, em família (não sem antes levar com a zaragatoa pelas narinas acima), e uma ou outra saída esporádica no bairro. Não que esteja em vigor o recolher obrigatório em São Paulo, mas porque sinto um certo desconforto em sair. Os números actuais da pandemia também não estão nada famosos por aqui e o cerco aos restaurantes está a apertar: lotação máxima de 40%, encerramento obrigatório às 20h durante a semana e tudo encerrado ao fim de semana 

De máscara K95 enfiada, apanho um Uber black e sigo de vidros abertos (apesar dos 30ºC) até ao bairro de Pinheiros. Esperam-me, no restaurante, uma pistola de medir a temperatura, uma torre de álcool gel, empregados de máscara e viseira e o meu amigo João Ferraz, já à mesa, numa sala quase vazia. Sente-se a circulação de vento fresco do ar condicionado, mas só retiro a máscara com a chegada da michelada e do primeiro prato do menu, um guacamole floral com umas “handmade” tostadas de milho. Top! Segue-se uma ostra bem kitada com um suave aguachile de uva e limão rosa e um crudo de prejereba (peixe) com um refrescante aguachile verde. Parti, sai da realidade doida e varrida, estou noutro mundo. Segue-se a tostada campechana com polvo e salada de peixe; um vegetariano mole de pistácio, brocolini e tomate confitado; um taco de borrego; mole, ricota e banana da terra; e um limpa palato de sorbet de manga pura com chamoy (pasta à base de pickles de frutas): fresco, salgado, doce, um ligeiro acre e um toque de malagueta, tudo em três colheradas. Que maravilha! A terminar, “fresas com crema”, um parfait de tequila com texturas de morango e merengue de hibisco. Pow!

  • ostra, aguachile de uva e limão rosa do restaurante Metzi
  • Crudo de prejereba com aguachile verde
  • Tostada campechana com polvo e salada de peixe
  • Mole de pistácio, brocolini e tomate confitado
  • Taco de borrego
  • Mole, ricota e banana da terra
  • “fresas com crema”, um parfait de tequila com texturas de morango e merengue de hibisco

Há quem nestes momentos se refugie na dita comida de conforto e eu também aprecio. Mas, por vezes, preciso quem me estimulem os sentidos, que me espicacem o palato. Era mesmo isto que estava a precisar naquele momento. Sabores aconchegantes e bem definidos, sem serem previsíveis. Que óptima refeição. Que bela cozinha mexicana, a da dupla do Restaurante Metzi, Luana Sabino e Eduardo Ortiz. Assente na tradição, mas contemporânea e local – na utilização e experimentação com ingredientes de época e da região. “Melhor do que no Cosme!”, disse-lhes, referindo-me ao restaurante nova-iorquino (com 1 estrela Michelin), onde ambos se cruzaram antes de virem para São Paulo. A comida cura. Nem que seja a alma.

Fotos: Miguel Pires (excepto as de entrada e do gaucamole, retiradas do Instagram do Metzirestaurant

Co-autor do Mesa Marcada. Escreve sobre gastronomia no Público, Revista de Vinhos (crítica gastronómica) e em títulos internacionais como Cook Inc (Itália), Eater.com (EUA) e Gula (Brasil). É autor do livro “Lisboa à Mesa - Guia onde Comer. Onde Comprar”, com edições em português, inglês e espanhol (na Planeta).

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