Covid-19 Opinião

Amanhã é dia da marmota

Num breve intervalo distraído, enquanto o corpo ainda dorme e a cabeça relaxada acorda, sou absolutamente feliz. Até que…

“I got you, babe!”

“I got you, babe!”

Quem viu o Feitiço do Tempo? 

No filme (uma espécie de crise de soluços temporal) Bill Murray representa um meteorologista ranzinza e sarcástico que revive infinitamente o mesmo dia, na pequena cidade de Punxsutawney, na Pensilvânia, onde uma marmota teria a capacidade de prever a duração do Inverno.

Phil, a marmota vidente, não é personagem inventada. É, de fato, a grande atração da cidadezinha norte-americana. Dizem que fala ‘marmotês’ com os membros do clube Inner Circle, que organizam, embonecam e perpetuam a lenda, e anuncia se o Inverno será longo ou não da seguinte maneira: se Phil vê a própria sombra e volta para a sua toca, é certo que haverá mais seis semanas de Inverno; caso contrário, a Primavera sorridente chegará mais cedo. 

Cena de Bill Murray em “O Feitiço do Tempo”Por acaso, o dia da marmota é amanhã, 2 de fevereiro.

Por acaso, o dia da marmota é amanhã, 2 de fevereiro.

Desde que Covid-19, o infeliz, decidiu fazer parte de nossas vidas, ando mais ranzinza que Bill Murray, revivendo o mesmo dia, notícias, contagens apocalípticas e a falta de esperança, indefinidamente. 

Marmotas sádicas quotidianas, na forma de médicos, cientistas e governantes, fazem previsões variadas, mas tem sido difícil acertar…

Como diria Bill Murray, em profunda depressão cinematográfica, a impressão é de que “vai ser frio, vai ser cinza e durará o resto de nossas vidas”.

Ando a acreditar em horóscopos, mandingas, cartomantes, feiticeiros, folhas de chá, fadas, oráculos, numerólogos e Nostradamus. Qualquer um que me dê esperança de voltar à vida como a conhecia, o mais rápido possível, tem meu voto. 

Já que tudo vale, por que não acreditar que uma marmota pode prever o fim do lockdown?

Se amanhã, Phil não voltar à toca, talvez as restrições terminem mais cedo, a vacinação nos surpreenda e novas cepas sejam fulminadas. Enfim, cantaremos felizes, batendo palmas atirando as máscaras para o céu, dançando na direção do arco-íris!

Caso contrário, tenho certeza de que o leitor vingativo terá ganas de servir Phil no jantar, como aconteceu no primeiro Dia da Marmota nos EUA, em 1887. 

Sugiro que pense novamente…

O boodok, prato comido em ocasiões especiais na Mongólia, é feito da marmota assada por uma hora e meia, com pedras incandescentes inseridas na carcaça (a essa hora, já sem as tripas e bem lambuzada de especiarias). 

É hábito tão antigo que, quando Marco Polo lá esteve, no século XIII, escreveu sobre os “ratos do faraó” como sendo o assado de predileção, na ocasião. Não deve ser mal. Dizem que o sabor está entre o de um porco e um frango.

Acontece que marmotas são hospedeiras da peste bubônica e os chineses, ao notarem que os mongóis as comiam, tentaram fazer o mesmo sem respeitar o tradicional método de caça dos vizinhos. O resultado foi uma epidemia, no início do século XX, que tirou mais de 60.000 vidas na China. A peste da Manchúria, aliás, foi uma das primeiras a levar organizações de saúde a pregarem o uso de máscaras, jalecos, luvas e outros equipamentos, como resposta à epidemias, também para civis.

E por que os mongóis não contraíam a doença? 

De acordo com o antigo ritual daquele país, o caçador deve vestir-se de branco, com um chapéu esquisitíssimo de onde caem orelhas compridas feitas de pele de coelho, além de um pendão imenso feito do rabo de um cavalo ou iaque. 

A marmota, ao primeiro sinal desse predador gigante e ridículo, dá um grito esganiçado e histérico (como o de minha filha, ao avistar uma barata), na esperança de afugentá-lo. Quando pára de gritar, o caçador a “premia” balançando as orelhonas e o pendão desengonçados, e confunde o bichinho. Nesse momento, consegue chegar mais perto. 

O balé de gritos, sacudidas e “passitos” é repetido inúmeras vezes, diminuindo a distância, até que finalmente a presa é capturada. 

Um caçador mongol jamais come uma marmota que não tenha gritado primeiro, ou que tenha encontrado morta. E o grande plot twist é: marmotas doentes não gritam. Disso, não sabiam os chineses.

Então, pense bem, ó leitor vingativo, antes de jogar sobre si esse carma e terminar espalhando mais uma epidemia. 

Brincadeiras à parte, e na mais desesperada tentativa de acreditar em qualquer coisa, torço para que Phil não volte amanhã à toca e nos dê um sinal de que, em breve, possamos sair, também, da nossa.

Pesquisadora e palestrante de gastronomia, turismo e inovação, é fundadora do Grupo Bazzar de Alimentos e colunista de gastronomia da Revista Veja Rio. Vive entre o Rio de Janeiro e Lisboa.

1 comment on “Amanhã é dia da marmota

  1. Isabela Carlos de Andrade Flórido

    Que delícia de texto! Viva o Dia da Marmota!
    By the way, Phil esnobou a sua toca???

    Gostar

Os comentários estão fechados.

%d bloggers gostam disto: