No princípio, eram as senhorinhas simpáticas ensinando os segredos de suas preparações para as “donas de casa” nos programas matinais. Muitas delas, aliás, cozinheiras respeitáveis, que depois se debruçaram sobre os receituários tradicionais criando referências bibliográficas até hoje consultadas e referenciadas em seus países.
Foi o caso de Julia Child, que irrompeu em 1962 na programação da jovem televisão americana com seu 1,90 metro e um pote na mão para preparar um boeuf bourguignon de seu excelente Mastering the Art of French Cooking . Assim, de supetão, transformou toda a maneira que os americanos (e todos nós, de certa forma) passaram a ver comida na televisão. Jamie Oliver nunca existiria como é hoje se não fossem essas senhoras desbravadoras — que já dominavam a cena muito antes dos “chefs alfa”.
É curioso que, muito tempo depois, mais precisamente em 2016, o Twitch, uma plataforma de broadcasting dominada por gamers dispostos a mostrar suas jogadas em tempo real no Counter Strike ou no League of Legends, decidiu criar um canal de culinária e escolheu justamente os programas de Child para a estreia, numa maratona que durou 100 horas ininterruptas. A surpresa é que a audiência (grande parte constituída por adolescentes) chegou à casa dos milhões, provando a atemporalidade da grande cozinheira — e das boas receitas televisivas (nesse caso, temperada por carisma e autenticidade).
*
Só mais recentemente a gastronomia chegou ao horário nobre impulsionada pelos chefs, à medida que eles próprios passaram a gozar de fama para figurar também nas capas de revistas e nas propagandas de grandes marcas. Primeiro com os reality shows “de cozinha”, gênero já muito explorado (esgarçado?), com cenários embasbacantes e participantes dispostos a tudo, que pariu sucessos estrondosos como MasterChef e Hell’s Kitchen.
Muitos deles, aliás, ganharam audiência forçando o clima “quente” e competitivo da cozinha, em que chefs raivosos chegam a humilhar participantes com gritos, palavrões e até violência — os ingleses Marco Pierre White e Gordon Ramsey como expoentes desse movimento. Ainda fico estarrecido, confesso, que o formato continue a dar frutos em pleno 2021, quando as discussões sobre o ambiente tóxico das cozinhas ganham mais força. Até quando vamos normalizar essa dita pressão que descamba em agressão?
*
Mas há fome por novidade, e até mesmo as competições souberam se reinventar ao “flirtar” com formatos em que a comida é o meio para prender a atenção do espectador — algo que a profusão de programas e o sucesso de muitos deles é prova indiscutível. Há cozinheiros amadores dispostos a surpreender os jurados com as receitas criativas (e um tanto “gourmets”) que conseguem fazer a partir das sobras das geladeiras (frigoríficos); os que tentam, sem nenhum sucesso (e aí está a graça!) reproduzir os estéticos e trabalhosos bolos da confeitaria moderna; os que usam a maconha (canábis) como ingrediente para elevar a percepção do júri sobre sua comida.
Cenários surrealistas com pedras comestíveis, bolos com a cara do ex-presidente Donald Trump, e um cão que dá as coordenadas para seu auxiliar cozinhar. Gosto especialmente de um programa coreano que traz para o estúdio a geladeira de personalidades — literalmente içada por um guindaste — para ver como elas conseguem se virar com ingredientes que têm, muitos dos quais podem estar ali há muito mais tempo do que se imagina.
*
Há outras séries documentais deliciosas, como a que a chef Samin Nosrat nos leva para a Itália em busca de queijos, e ao México a provar limões, para comprovar sua tese de que a cozinha é um equilíbrio de sal, gordura, ácido e calor. Ou as ficcionais, como Midnight Diner, baseada em um mangá (BD japonesa) e que se passa em um pequeno restaurante de Tóquio para onde as pessoas vão na madrugada em busca de alimento, alento e conforto.
E diferentes ideias surgem toda semana no cardápio de opções a um clique do controle remoto. Ainda em Março, a ex-primeira dama Michelle Obama vai protagonizar uma série infantil de culinária em que se junta a dois fantoches (os fofinhos Waffles e Mochi) para falar sobre alimentação saudável e as aventuras de cozinhar alimentos frescos. O chef René Redzepi, do venerado Noma, é a voz de uma nova série que a Apple começa a captar agora sobre a comida no mundo, numa produção grandiloquente com gravações em todos os continentes.
De Snoop Dogg a Gwyneth Paltrow, de Selena Gomez a comediantes, todo mundo quer ter seu cooking show. É curioso pensar até como a comida (um tema tão transversal a todos nós, e por isso tão aparentemente democrático) tem servido até para celebridades saírem da geladeira, empreendendo séries e programas culinários para voltar ao activo — ou até para aumentarem ainda mais seu fandom, como é o caso do actor Stanley Tucci, que se mostrou um recente “especialista” em culinária italiana numa série que produziu com a CNN. No Brasil, gente que não aparecia em novelas há anos volta à baila com algumas “receitinhas especiais” num programa qualquer. Afinal, todo mundo pode cozinhar. E todo mundo pode pegar carona no hype da comida.
*
No isolamento da pandemia, os programas de comida ganharam ainda maior notabilidade nas plataformas de streaming — talvez uma forma de nos aplacar as saudades de ir a restaurantes ou de diversificar as preparações que não sejam as nossas: de vermos outras mãos a fazerem receitas, mudar a perspectiva da nossa própria cozinha que não aguentamos mais.
Ver pessoas cozinhando, como já pontuou Michael Pollan (também ele protagonista de uma série para chamar de sua), nos aproxima de um sentido de natureza ao qual estamos cada vez mais separados. Ainda mais em tempos que ela se resume às plantas espalhadas pelo apartamento e alguns vegetais cansados e já sem ramas na gaveta da geladeira. A “cozinha na tv” é o entretenimento perfeito desses tempos pandémicos, em que tudo não passa de uma ilusão de uma normalidade que não sabemos mais que sabor tem.
No isolamento da pandemia, os programas de comida ganharam ainda maior notabilidade nas plataformas de streaming — talvez uma forma de nos aplacar as saudades de ir a restaurantes ou de diversificar as preparações que não sejam as nossas: de vermos outras mãos a fazerem receitas, mudar a perspectiva da nossa própria cozinha que não aguentamos mais.
Crónica de Rafael Tonon publicada originalmente na sua newsletter Ao Ponto, (que pode ser subscrita, aqui)
No princípio, eram as senhorinhas simpáticas ensinando os segredos de suas preparações para as “donas de casa” nos programas matinais. Muitas delas, aliás, cozinheiras respeitáveis, que depois se debruçaram sobre os receituários tradicionais criando referências bibliográficas até hoje consultadas e referenciadas em seus países.
Foi o caso de Julia Child, que irrompeu em 1962 na programação da jovem televisão americana com seu 1,90 metro e um pote na mão para preparar um boeuf bourguignon de seu excelente Mastering the Art of French Cooking . Assim, de supetão, transformou toda a maneira que os americanos (e todos nós, de certa forma) passaram a ver comida na televisão. Jamie Oliver nunca existiria como é hoje se não fossem essas senhoras desbravadoras — que já dominavam a cena muito antes dos “chefs alfa”.
É curioso que, muito tempo depois, mais precisamente em 2016, o Twitch, uma plataforma de broadcasting dominada por gamers dispostos a mostrar suas jogadas em tempo real no Counter Strike ou no League of Legends, decidiu criar um canal de culinária e escolheu justamente os programas de Child para a estreia, numa maratona que durou 100 horas ininterruptas. A surpresa é que a audiência (grande parte constituída por adolescentes) chegou à casa dos milhões, provando a atemporalidade da grande cozinheira — e das boas receitas televisivas (nesse caso, temperada por carisma e autenticidade).
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Só mais recentemente a gastronomia chegou ao horário nobre impulsionada pelos chefs, à medida que eles próprios passaram a gozar de fama para figurar também nas capas de revistas e nas propagandas de grandes marcas. Primeiro com os reality shows “de cozinha”, gênero já muito explorado (esgarçado?), com cenários embasbacantes e participantes dispostos a tudo, que pariu sucessos estrondosos como MasterChef e Hell’s Kitchen.
Muitos deles, aliás, ganharam audiência forçando o clima “quente” e competitivo da cozinha, em que chefs raivosos chegam a humilhar participantes com gritos, palavrões e até violência — os ingleses Marco Pierre White e Gordon Ramsey como expoentes desse movimento. Ainda fico estarrecido, confesso, que o formato continue a dar frutos em pleno 2021, quando as discussões sobre o ambiente tóxico das cozinhas ganham mais força. Até quando vamos normalizar essa dita pressão que descamba em agressão?
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Mas há fome por novidade, e até mesmo as competições souberam se reinventar ao “flirtar” com formatos em que a comida é o meio para prender a atenção do espectador — algo que a profusão de programas e o sucesso de muitos deles é prova indiscutível. Há cozinheiros amadores dispostos a surpreender os jurados com as receitas criativas (e um tanto “gourmets”) que conseguem fazer a partir das sobras das geladeiras (frigoríficos); os que tentam, sem nenhum sucesso (e aí está a graça!) reproduzir os estéticos e trabalhosos bolos da confeitaria moderna; os que usam a maconha (canábis) como ingrediente para elevar a percepção do júri sobre sua comida.
Cenários surrealistas com pedras comestíveis, bolos com a cara do ex-presidente Donald Trump, e um cão que dá as coordenadas para seu auxiliar cozinhar. Gosto especialmente de um programa coreano que traz para o estúdio a geladeira de personalidades — literalmente içada por um guindaste — para ver como elas conseguem se virar com ingredientes que têm, muitos dos quais podem estar ali há muito mais tempo do que se imagina.
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Há outras séries documentais deliciosas, como a que a chef Samin Nosrat nos leva para a Itália em busca de queijos, e ao México a provar limões, para comprovar sua tese de que a cozinha é um equilíbrio de sal, gordura, ácido e calor. Ou as ficcionais, como Midnight Diner, baseada em um mangá (BD japonesa) e que se passa em um pequeno restaurante de Tóquio para onde as pessoas vão na madrugada em busca de alimento, alento e conforto.
E diferentes ideias surgem toda semana no cardápio de opções a um clique do controle remoto. Ainda em Março, a ex-primeira dama Michelle Obama vai protagonizar uma série infantil de culinária em que se junta a dois fantoches (os fofinhos Waffles e Mochi) para falar sobre alimentação saudável e as aventuras de cozinhar alimentos frescos. O chef René Redzepi, do venerado Noma, é a voz de uma nova série que a Apple começa a captar agora sobre a comida no mundo, numa produção grandiloquente com gravações em todos os continentes.
De Snoop Dogg a Gwyneth Paltrow, de Selena Gomez a comediantes, todo mundo quer ter seu cooking show. É curioso pensar até como a comida (um tema tão transversal a todos nós, e por isso tão aparentemente democrático) tem servido até para celebridades saírem da geladeira, empreendendo séries e programas culinários para voltar ao activo — ou até para aumentarem ainda mais seu fandom, como é o caso do actor Stanley Tucci, que se mostrou um recente “especialista” em culinária italiana numa série que produziu com a CNN. No Brasil, gente que não aparecia em novelas há anos volta à baila com algumas “receitinhas especiais” num programa qualquer. Afinal, todo mundo pode cozinhar. E todo mundo pode pegar carona no hype da comida.
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No isolamento da pandemia, os programas de comida ganharam ainda maior notabilidade nas plataformas de streaming — talvez uma forma de nos aplacar as saudades de ir a restaurantes ou de diversificar as preparações que não sejam as nossas: de vermos outras mãos a fazerem receitas, mudar a perspectiva da nossa própria cozinha que não aguentamos mais.
Ver pessoas cozinhando, como já pontuou Michael Pollan (também ele protagonista de uma série para chamar de sua), nos aproxima de um sentido de natureza ao qual estamos cada vez mais separados. Ainda mais em tempos que ela se resume às plantas espalhadas pelo apartamento e alguns vegetais cansados e já sem ramas na gaveta da geladeira. A “cozinha na tv” é o entretenimento perfeito desses tempos pandémicos, em que tudo não passa de uma ilusão de uma normalidade que não sabemos mais que sabor tem.
No isolamento da pandemia, os programas de comida ganharam ainda maior notabilidade nas plataformas de streaming — talvez uma forma de nos aplacar as saudades de ir a restaurantes ou de diversificar as preparações que não sejam as nossas: de vermos outras mãos a fazerem receitas, mudar a perspectiva da nossa própria cozinha que não aguentamos mais.
Crónica de Rafael Tonon publicada originalmente na sua newsletter Ao Ponto, (que pode ser subscrita, aqui)
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