Podem ser gordas ou magras, doces ou salgadas, e ainda ter gosto de melão, pepino, azeitona, cogumelo, fumaça, mel, alga, grama, espinafre, agrião, alface, ferro, cobre, alumínio ou ferrugem, pólvora, ardósia, granito ou calcário. Como podem fazer tanto com tão pouco?
Duvido que pessoas normais passem tanto tempo pensando em ostras, quanto eu. Agora, mais um pouco, já que me sinto como elas.
Sempre estive do outro lado, catando conchas pelo mundo, encantada com a variedade de sabores, formatos e texturas.
Já no colégio, costumava invejar os fenícios, comerciantes de tanta coisa, vendendo ostras desde os territórios onde hoje são o Canal da Mancha, Portugal e Espanha, até o Líbano. Imaginava aqueles barcos de guerra com 170 remadores, fazendo das cavernas pelo caminho, a sua despensa: era entrar, escolher e comer. Afinal, as ostras sempre foram perfeitas para os marinheiros: preveniam o escorbuto, “aconteciam” pelo trajeto, sem pesar na viagem, e uma dúzia delas emprestava a mesma quantidade de proteína de um pequeno filé. Remem!
Cá estou, a remar pelo lockdown, sem a mesma energia.
Me recuso a tê-las na cozinha de casa porque associo ao prazer de viajar, mas começo a mudar de ideia. Me lembro de minha mãe, arqueóloga, estudando os sambaquis do litoral do Rio de Janeiro, pilhas de ostras de até 20 metros amontoadas pelos povos pré-históricos do litoral, que comprovam que nunca estive só na obsessão. Hão de me achar, 5 mil anos para a frente, apoiada em pequenas montanhas, espalhadas pela sala.
Sou casada com crassostrea gigas há tantos anos, que entendo suas mudanças de humor. A espécie mais cultivada, tanto no Brasil quanto em Portugal, tem uma nota típica de melão, mas nem sempre. Vai inchando até ficar leitosa, na Primavera, quando se prepara para a reprodução, e então a fruta diminui na boca e o sabor das gônadas (órgãos sexuais) aumenta. Quando acaba de desovar, murcha. É outra ostra. Como mudanças climáticas existem e a temperatura das águas varia de uma região para a outra, a ostra é como um presente que só se descobre ao abrir a caixa.
Nas magrinhas, a fruta diminui, mas aparecem lindas notas minerais e de algas. Há quem prefira assim…. quando muito gordas, ficam menos complexas e mais doces e untuosas, mas há quem prefira assado. A verdade está no meio.
Não fosse a nossa fome, as ostras viveriam até uns 50 anos, mas o tempo é determinante, especialmente para quem as cria e vende. Paciência tem limite.
Na Ria Formosa, no Algarve, ficam adultas em onze meses, enquanto a mesma ostra, na França, precisaria de dois anos ou mais para atingir o mesmo tamanho. Não à toa, Portugal é berço de inúmeras variedades que nascem francesas, crescem em águas lusitanas e voltam à França para resgatar um tanto da alma e do terroir.
E o ‘vai e vem’ se dá em todo o canto. Me lembro das deliciosas Pérolas de Mônaco, que nascem na falésia do principado, são levadas à Bretanha para a engorda e, em seguida, voltam às bacias de affinage (as claires) que definem sua personalidade.
Como diria Mark Twain, “não é o tamanho do cachorro na briga; é o tamanho da briga no cachorro.” Se existe uma verdade sobre as conchas, é essa. Pequeninas, macias e densas, de um sabor profundo e divino, as ostras Kusshi que provei no Canadá, comprovam a teoria. Não é que não aprecie, e muito, as “Pied de Cheval” (Belon), de Cancale, que pesam, em média, de 350 a 400 gramas, têm sabor de iodo e avelãs e demoram mais de 10 anos para chegarem àquele porte absurdo, mas em geral, tamanho não é documento.
Ainda no Canadá, abracei a missão de provar todas as ostras da ilha Prince Edward, especialmente as Malpeque (crassostrea virginica), que ganharam fama na Exposição Universal de Paris, em 1900, quando foram consideradas “as melhores do Mundo”. Quer dizer… daquele mundo, que ali se resumia. Não presto grande atenção a títulos, mas ficaria até o fim dos meus dias com o balé gordo e salgado, com leve toque de alface que me dançava pela língua.
Os EUA também são um verdadeiro parque de diversões, para quem gosta do assunto. Quem prefere sabores arredondados e cremosos, vai adorar as ostras da Costa Oeste, onde predominam as Kusshi, das quais falei, e as Kumamoto, mais parecidas com as nossas, gordas e amanteigadas na boca. As da Costa Leste têm sabor crespo e um quê de salmoura. É pra gente que, como eu, gosta de alvarinho, picles e sauvignon neozelandês, se é que me entendem. Entre as preferidas, lembro com carinho das Island Creek, Chatham ou East Beach Blonde, todas da espécie crassostrea virginica.
Um sabor muito original, que sabe a algas, gordo e profundo, achei nas Borde Negro (ostrea chilensis), endêmicas do Arquipélago de Chiloé, no Sul do Chile. Por acaso, me lembraram muito as deliciosas Bluff, da Nova Zelândia.
Na “antiga” Zeeland, no Sudoeste da Holanda, provei as Zeeuswe (finas), que amadurecem em dois anos, e as Platte (chatas) que amadurecem em 6. Quando madura, a segunda espécie tem sabor delicado e preço amargo. As Platte são crespas, salinas e, ao mesmo tempo, sedosas e untuosas. Estão entre as melhores do mundo, em qualquer concurso. Gostei mais das cultivadas do que das selvagens (quebrando aqui, alguns mitos) e me apaixonei igualmente por pequeninas e gigantes.
Empolguei-me no passeio, acho…
Assim como as larvas de ostras, fomos cuspidos por nossas mães, concha afora, cheios de esperanças e planos, e arrastados pelas correntes da vida, até agora. Chegou o momento de nos fixarmos, indefinidamente, num canto seguro.
Sim, “estamos” ostras. A diferença é que essas criaturas existem há mais de 200 milhões de anos e aprenderam a lidar com a imobilidade. Adaptam-se ao terreno à medida que crescem e, ao primeiro sinal de ameaça, sabem que o melhor é trancar-se dentro das conchas por até 2 semanas, para suportar marés baixas, predadores ou poluição, sem contato algum com o exterior.
As ostras são muito mais sábias que nós.
Façamos do nosso confinamento uma pérola.
Muito
Obrigado, um artigo de difícil leitura, dadas as saudades delas. Muito mundo, obrigado
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obrigada pela leitura!
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