Na semana passada publicámos, aqui, no Mesa Marcada, uma crónica do nosso colaborador Rafael Tonon (jornalista brasileiro radicado no Porto) com tema, Comer como um local é uma falácia. No seguimento desse texto, o seu compatriota, historiador e personalidade conhecida do mundo da gastronomia, João Grinspum Ferraz, volta ao tema, com um enquadramento histórico e uma perspectiva diferente.
Tentar emular a experiência do outro não é uma novidade na história. Os padrões civilizatórios do Antigo Regime, na Idade Moderna, e sobretudo em seu ocaso, espelhavam a ideia de prestigio da corte Francesa, cujos ritos – e às vezes ate mesmo a língua – eram copiados por toda a Europa, como variante de refinamento e nobreza. A leitura de Tolstoi nos dá a lembrança de que o francês era a língua comum na corte do Czar, e sobre esse assunto Norbert Elias se debruçou em seu genial “O Processo Civilizador”, de 1939.
A cultura popular, por sua vez, tinha sua sobrevivência relegada à fazer aquilo que lhe era possível: adaptar-se ao seu entorno da melhor maneira, fosse na cidade ou no campo. Fazer uso daquilo que se podia cultivar ou adquirir, ou, ainda, do que a natureza fornecesse. Essa aparente simplicidade forjou aquilo que terminou por se chamar de “autentico”: um modo dinâmico e vivo que se apropriava de costumes, experiências e expressões, conhecimentos, saberes e crenças formando um modus vivendi mais ou menos comum a cada uma das partes desse planeta.
Ao longo do século XIX, e do começo do XX, as monarquias esfacelaram-se, e a ideia de um Estado Nacional, dotado de uma identidade própria, unitária e autentica, passou a se conformar como fundamento da amalgama que juntava àquele povo àquele território. Para isso houve um processo natural de seleção de uma simbologia nacional, ou seja, da construção daquilo que seriam os símbolos nacionais de cada país, aqueles elementos culturais e históricos que fariam com que cada Português se sentisse português, como assim ocorreu na França, no Brasil e em toda parte. Evidentemente, resumo aqui um processo longo e complexo, cujas especificidades em cada Estado são tantas que nem seria possível descrever – e nem mesmo o historiador Eric Hobsbawm tentou dar conta delas em seu livro “A Invenção das Tradições”.
Mas, como nos alerta Hobsbawm, esses processos, ainda que ocorridos de maneira lenta e mais ou menos gradual, ocorreram de maneira artificial e ficcional. Na cultura e na historia de cada Estado, certos fatos e costumes foram relevados em nome de outros que foram alçados ao panteão nacional, e assim construiu-se uma mitologia nacional de cada lugar, conectada por uma língua comum, uma moeda, um governo e por diversos ritos que então se afirmaram, e que hoje reconhecemos em nós mesmos. E se é verdade que esse processo ocorreu em nível nacional, ele ocorreu também nas diversas instâncias locais: cada cidade, aldeia ou vila passou a gozar de certos costumes, festas, comidas ou ocasiões que lhe são próprias e cuja autenticidade estaria forjada à ferro e fogo àquela pequena porção de terra. Esses processos, evidentemente, também gozam do caráter artificial ou ficcional, como apontou Hobsbawm. E, não querendo ser mal entendido, aqui não se diz que não há uma certa verdade na história nacional mas, como hoje se sabe, a historia de cada lugar começa antes da existência daquele lugar, vêm com suas gentes e costumes que ali se assentaram.
Ainda assim, o mundo e suas gentes são muito mais complexos do que um conjunto de historias e costumes, e não há – como lembra João Guimarães Rosa – certeza nenhuma capaz de dar conta da natureza da gente. A cultura popular, como assim a entendemos, é um elemento vivo e dinâmico, altamente adaptativo: palavras são criadas, ganham novos semânticos e nova grafia; receitas se transformam, ganhando novos temperos e novos ingredientes – ou alguém acredita que a Broa, cuja origem onomástica é Sueva, sempre foi feita com milho maiz, cuja chegada na Europa se deu apenas no século XVI ? Como explicar essa lacuna de mil anos entre o fim do reino Suevo e a chegada do milho maiz na Europa?
Isso dito, é preciso então pensar se a própria ideia de que haja “um local” faz algum sentido – sobretudo em pleno século XXI. Tomemos Portugal como exemplo: se as gentes conformadas nesta pequena porção de terra, quando se formou, no século XIII, já eram uma mistura entre povos latinos, Suevos, Visigodos, Judeus e Árabes, Lusitanos e Celtas, Gregos e Fenícios, dentre muitos outros, heterogêneas em suas caras, feições e costumes, imagine só hoje, após séculos de empresa ultramarina, após a globalização e a unidade europeia?
Se os costumes são dinâmicos, mudando a todo o tempo, e estão em eterna construção e destruição, apontar para alguma parte e dizer “aquilo é local” é, por si só, fazer folclore. E o folclore não é parte da Cultura Popular, mas sim do que se convencionou chamar de Cultura de Massa, como bem nos lembra Alfredo Bosi. O folclore – e isso vale para a cultura como um todo e, sobretudo, para a cultura alimentar – é a cristalização estática de algo que está em movimento: escolhe-se uma receita de cozido, uma receita de Broa, uma maneira de fazer um bacalhau e a esta se atribui o rótulo de “autentico”. Ora, bem sabemos que cada casa tem a sua maneira de preparar uma receita, de tomar o seu pequeno almoço ou de deitar-se a cama. A única utilidade então do rótulo de “autentico” é transformar algo em produto, a ser consumido e propagado. Logo, esse processo de folclorização é exógeno à cultura popular, e sim parte daquela narrativa feita pela cultura do consumo – a cultura de massa.
Não quero, com isso, defender o esmagamento e o soterramento de costumes e culturas; nem aqui se faz uma apologia da tecnologia globalizada. Muito pelo contrário: chegou a hora de olharmos para cada parte com suas particularidades, engenhosidades e belezas e abraçar aquilo que melhor se pode aprender daí. Técnicas, processos, maneiras de se adaptar a natureza, de conviver com o próximo. E se essa lição é rica de maneira ampla, deveria ser ainda mais no universo da comida: olhar para o entorno deveria ser menos sobre viver como o local, e aproveitar o local, mas sim aproveitar as soluções novas que resgatam maneiras de fazer, de construir e de cultivar produtos e sabores. Que cozinheiros façam da sua cozinha algo único, atípico e estranho mas ao mesmo tempo reconhecível no uso de certos produtos, preparações e temperos, resguardando maneiras de viver das gentes que ocupam a terra e os mares e que produzem e coletam os ingredientes. A beleza está na eterna criação e não na repetição – no respeito à essência e não à receita.
Na semana passada publicámos, aqui, no Mesa Marcada, uma crónica do nosso colaborador Rafael Tonon (jornalista brasileiro radicado no Porto) com tema, Comer como um local é uma falácia. No seguimento desse texto, o seu compatriota, historiador e personalidade conhecida do mundo da gastronomia, João Grinspum Ferraz, volta ao tema, com um enquadramento histórico e uma perspectiva diferente.
Tentar emular a experiência do outro não é uma novidade na história. Os padrões civilizatórios do Antigo Regime, na Idade Moderna, e sobretudo em seu ocaso, espelhavam a ideia de prestigio da corte Francesa, cujos ritos – e às vezes ate mesmo a língua – eram copiados por toda a Europa, como variante de refinamento e nobreza. A leitura de Tolstoi nos dá a lembrança de que o francês era a língua comum na corte do Czar, e sobre esse assunto Norbert Elias se debruçou em seu genial “O Processo Civilizador”, de 1939.
A cultura popular, por sua vez, tinha sua sobrevivência relegada à fazer aquilo que lhe era possível: adaptar-se ao seu entorno da melhor maneira, fosse na cidade ou no campo. Fazer uso daquilo que se podia cultivar ou adquirir, ou, ainda, do que a natureza fornecesse. Essa aparente simplicidade forjou aquilo que terminou por se chamar de “autentico”: um modo dinâmico e vivo que se apropriava de costumes, experiências e expressões, conhecimentos, saberes e crenças formando um modus vivendi mais ou menos comum a cada uma das partes desse planeta.
Ao longo do século XIX, e do começo do XX, as monarquias esfacelaram-se, e a ideia de um Estado Nacional, dotado de uma identidade própria, unitária e autentica, passou a se conformar como fundamento da amalgama que juntava àquele povo àquele território. Para isso houve um processo natural de seleção de uma simbologia nacional, ou seja, da construção daquilo que seriam os símbolos nacionais de cada país, aqueles elementos culturais e históricos que fariam com que cada Português se sentisse português, como assim ocorreu na França, no Brasil e em toda parte. Evidentemente, resumo aqui um processo longo e complexo, cujas especificidades em cada Estado são tantas que nem seria possível descrever – e nem mesmo o historiador Eric Hobsbawm tentou dar conta delas em seu livro “A Invenção das Tradições”.
Mas, como nos alerta Hobsbawm, esses processos, ainda que ocorridos de maneira lenta e mais ou menos gradual, ocorreram de maneira artificial e ficcional. Na cultura e na historia de cada Estado, certos fatos e costumes foram relevados em nome de outros que foram alçados ao panteão nacional, e assim construiu-se uma mitologia nacional de cada lugar, conectada por uma língua comum, uma moeda, um governo e por diversos ritos que então se afirmaram, e que hoje reconhecemos em nós mesmos. E se é verdade que esse processo ocorreu em nível nacional, ele ocorreu também nas diversas instâncias locais: cada cidade, aldeia ou vila passou a gozar de certos costumes, festas, comidas ou ocasiões que lhe são próprias e cuja autenticidade estaria forjada à ferro e fogo àquela pequena porção de terra. Esses processos, evidentemente, também gozam do caráter artificial ou ficcional, como apontou Hobsbawm. E, não querendo ser mal entendido, aqui não se diz que não há uma certa verdade na história nacional mas, como hoje se sabe, a historia de cada lugar começa antes da existência daquele lugar, vêm com suas gentes e costumes que ali se assentaram.
Ainda assim, o mundo e suas gentes são muito mais complexos do que um conjunto de historias e costumes, e não há – como lembra João Guimarães Rosa – certeza nenhuma capaz de dar conta da natureza da gente. A cultura popular, como assim a entendemos, é um elemento vivo e dinâmico, altamente adaptativo: palavras são criadas, ganham novos semânticos e nova grafia; receitas se transformam, ganhando novos temperos e novos ingredientes – ou alguém acredita que a Broa, cuja origem onomástica é Sueva, sempre foi feita com milho maiz, cuja chegada na Europa se deu apenas no século XVI ? Como explicar essa lacuna de mil anos entre o fim do reino Suevo e a chegada do milho maiz na Europa?
Isso dito, é preciso então pensar se a própria ideia de que haja “um local” faz algum sentido – sobretudo em pleno século XXI. Tomemos Portugal como exemplo: se as gentes conformadas nesta pequena porção de terra, quando se formou, no século XIII, já eram uma mistura entre povos latinos, Suevos, Visigodos, Judeus e Árabes, Lusitanos e Celtas, Gregos e Fenícios, dentre muitos outros, heterogêneas em suas caras, feições e costumes, imagine só hoje, após séculos de empresa ultramarina, após a globalização e a unidade europeia?
Se os costumes são dinâmicos, mudando a todo o tempo, e estão em eterna construção e destruição, apontar para alguma parte e dizer “aquilo é local” é, por si só, fazer folclore. E o folclore não é parte da Cultura Popular, mas sim do que se convencionou chamar de Cultura de Massa, como bem nos lembra Alfredo Bosi. O folclore – e isso vale para a cultura como um todo e, sobretudo, para a cultura alimentar – é a cristalização estática de algo que está em movimento: escolhe-se uma receita de cozido, uma receita de Broa, uma maneira de fazer um bacalhau e a esta se atribui o rótulo de “autentico”. Ora, bem sabemos que cada casa tem a sua maneira de preparar uma receita, de tomar o seu pequeno almoço ou de deitar-se a cama. A única utilidade então do rótulo de “autentico” é transformar algo em produto, a ser consumido e propagado. Logo, esse processo de folclorização é exógeno à cultura popular, e sim parte daquela narrativa feita pela cultura do consumo – a cultura de massa.
Não quero, com isso, defender o esmagamento e o soterramento de costumes e culturas; nem aqui se faz uma apologia da tecnologia globalizada. Muito pelo contrário: chegou a hora de olharmos para cada parte com suas particularidades, engenhosidades e belezas e abraçar aquilo que melhor se pode aprender daí. Técnicas, processos, maneiras de se adaptar a natureza, de conviver com o próximo. E se essa lição é rica de maneira ampla, deveria ser ainda mais no universo da comida: olhar para o entorno deveria ser menos sobre viver como o local, e aproveitar o local, mas sim aproveitar as soluções novas que resgatam maneiras de fazer, de construir e de cultivar produtos e sabores. Que cozinheiros façam da sua cozinha algo único, atípico e estranho mas ao mesmo tempo reconhecível no uso de certos produtos, preparações e temperos, resguardando maneiras de viver das gentes que ocupam a terra e os mares e que produzem e coletam os ingredientes. A beleza está na eterna criação e não na repetição – no respeito à essência e não à receita.
João Grinspum Ferraz
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