Esta manhã, em comunicado de imprensa, a Michelin anunciou que a próxima edição do Guia Michelin Espanha & Portugal 2022 será realizado em Valência. Porém, apesar da informação ter mais de 5000 palavras, bem espremido, é, acima de tudo, um comunicado de circunstância. A escolha de Valência é justificada como “um dos destinos turísticos por excelência da Península Ibérica, graças à sua indiscutível beleza, às suas formosas praias, às suas apelativas festas e, sem dúvida, ao seu profundo património gastronómico” e é anunciado que Quique Dacosta será o coordenador gastronómico do evento.
Quanto ao local, segundo o comunicado, será “num emblemático cenário ainda por revelar” e, quanto a uma data, a omissão é total. Esta mão cheia de nada e a outra de coisa nenhuma (ou de coisa pouca) levou-nos a procurar Angel Pardo, por telefone. E o responsável de comunicação para a Península Ibérica da empresa tinha, de facto, mais a adiantar. Disse-nos, por exemplo, que dispõem diversas hipóteses de locais em Valência e que tudo aponta para que a gala se realize a 14 de Dezembro. “Temos vários sítios reservados. A escolha vai depender do que for possível fazer: presencial, parcialmente presencial, ou virtual”, afirma Angel Pardo, que gostaria muito de poder voltar a ter uma gala presencial, mesmo que mais reduzida, com cozinheiros, a imprensa e parceiros. “Tenho esperança de nos podermos ver de novo e de conviver, afinal toda esta situação está um pouco a afectar-nos psicologicamente a todos”.
Em relação às avaliações dos restaurantes, foi igualmente importante termos chegado à fala, dado que o comunicado era dúbio e poderia dar a entender que as visitas estariam feitas, o que seria estranho, pois houve muito pouco tempo para as fazer uma vez que os restaurantes estiveram fechados por um largo período. Dizia então o comunicado:
“A nova seleção do Guia será dada a conhecer com base no intenso trabalho realizado pela equipa de inspectores MICHELIN, que não deixaram de lado as suas obrigações apesar das dificuldades específicas desta crise sócio-sanitária que está a afetar o conjunto da sociedade”.
Não sei se foi algum problema de tradução, porém Angel Pardo foi peremptório:
“Os inspectores estão neste momento por várias regiões de Espanha” (as permissões de abertura no país vizinho variam de região para região), dizendo que assim que possível estarão em Portugal e que se irão repartir pelos dois países até Outubro sem paragens no Verão. Por cá, serão dois portugueses e quatro galegos, auxiliados por inspectores de outros países, tal como aconteceu no ano passado, segundo informou.
Outra questão que se colocou foi a da continuação ou não dos guias em papel. É sabido que nos últimos anos a Michelin tem investido cada vez mais recursos em empresas e em versões digitais do guia. Porém, na semana passada, segundo notícia do New York Times, houve uma novidade. Foi comunicado que os guias das várias cidades norte-americanas, a lançar em breve, seriam apenas em versão digital: “nenhum guia vermelho está sendo impresso, nem consta que será no futuro”, refere a autora da notícia, Florence Fabricant.
Angel Pardo diz não ter indicações a esse respeito, mas não esconde que cada vez mais a aposta é no digital, referindo mesmo que as vendas têm vindo em declínio. “Não tenho os números comigo, mas no ano passado imprimimos oito, nove mil exemplares” da edição Ibérica. Segundo ele, num futuro próximo, a tendência é que se imprimam apenas “alguns exemplares para colecionadores ou para quem queira mesmo ter o guia em papel”.
A verdade é que já hoje em dia toda a informação (ou muita dela) que consta nos guias de papel está publicada gratuitamente no site da Michelin ou em aplicações para dispositivos móveis, com todas a funcionalidade que estes meios proporcionam, como a definição de percursos, mapas digitais, a escolha de restaurantes mais próximos, ou a reserva de mesa.
Aliás, no site global da Michelin, a estratégia para a área de mobilidade (onde se englobam os guias gastronómicos, os de viagens e os mapas) é clara: “continuamos a expandir nossa oferta de serviços, especialmente online, para aprimorar ainda mais as experiências de mobilidade de nossos clientes”. Ainda há muitas dúvidas quanto ao modelo de negócio e à sua rentabilidade, mas não havia uma outra hipótese se não uma fuga para a frente. “Estamos a tentar nos adaptar a este novo mundo digital de conteúdos gratuitos”, admitia um dos responsáveis da empresa, em 2012
Foi nesse sentido, no que diz respeito apenas a esta área, que em 2017 a empresa adquiriu uma participação na Wine Advocate de Robert Parker, bem como no informal guia francês Fooding Guide – uma quase antítese do Guia Michelin.
O mesmo espírito esteve na base da aquisição das plataformas de reservas de restaurantes BookaTable, em Inglaterra, Restaurantes.com, em Espanha e também o site de reserva de hotéis Tablet.com.
A divisão dos Guias Michelin tem vindo também a desenvolver o negócio das galas e da expansão para novos territórios, arrastando sempre uma certa polémica, mas a área em grande ebulição é mesmo a referida acima. É que em 2019, a Michelin acabaria por vender as duas primeiras plataformas ao grupo Tripadvisor, que as juntou ao The Fork e expandiu a vários países europeus. Além da compra, a empresa de conteúdos publicados pelos próprios usuários/consumidores (também aqui o oposto do guia vermelho) estabeleceu um acordo com o Guia Michelin para poder utilizar em paralelo as suas classificações (Estrelas, prato Michelin, bib gourmand, etc) ao lado de cada estabelecimento expandindo e popularizando o selo da marca Michelin junto de públicos mais jovens.
No entanto, ao que parece, nenhuma destas mudanças influenciam, na sua essência, as classificações e os conteúdos dos vetustos guias vermelhos, que por mais que se aproximem de uma certa contemporaneidade, de uma maior aposta em restaurantes mais simples (os bib gourmand), ou mais sustentáveis (atribuindo estrelas verdes), dificilmente deixarão de privilegiar um certo luxo e um tipo de cozinha mais perfecionista e afrancesada. Seja em Paris, São Paulo, Tóquio… ou Valência.
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Esta manhã, em comunicado de imprensa, a Michelin anunciou que a próxima edição do Guia Michelin Espanha & Portugal 2022 será realizado em Valência. Porém, apesar da informação ter mais de 5000 palavras, bem espremido, é, acima de tudo, um comunicado de circunstância. A escolha de Valência é justificada como “um dos destinos turísticos por excelência da Península Ibérica, graças à sua indiscutível beleza, às suas formosas praias, às suas apelativas festas e, sem dúvida, ao seu profundo património gastronómico” e é anunciado que Quique Dacosta será o coordenador gastronómico do evento.
Quanto ao local, segundo o comunicado, será “num emblemático cenário ainda por revelar” e, quanto a uma data, a omissão é total. Esta mão cheia de nada e a outra de coisa nenhuma (ou de coisa pouca) levou-nos a procurar Angel Pardo, por telefone. E o responsável de comunicação para a Península Ibérica da empresa tinha, de facto, mais a adiantar. Disse-nos, por exemplo, que dispõem diversas hipóteses de locais em Valência e que tudo aponta para que a gala se realize a 14 de Dezembro. “Temos vários sítios reservados. A escolha vai depender do que for possível fazer: presencial, parcialmente presencial, ou virtual”, afirma Angel Pardo, que gostaria muito de poder voltar a ter uma gala presencial, mesmo que mais reduzida, com cozinheiros, a imprensa e parceiros. “Tenho esperança de nos podermos ver de novo e de conviver, afinal toda esta situação está um pouco a afectar-nos psicologicamente a todos”.
Em relação às avaliações dos restaurantes, foi igualmente importante termos chegado à fala, dado que o comunicado era dúbio e poderia dar a entender que as visitas estariam feitas, o que seria estranho, pois houve muito pouco tempo para as fazer uma vez que os restaurantes estiveram fechados por um largo período. Dizia então o comunicado:
“A nova seleção do Guia será dada a conhecer com base no intenso trabalho realizado pela equipa de inspectores MICHELIN, que não deixaram de lado as suas obrigações apesar das dificuldades específicas desta crise sócio-sanitária que está a afetar o conjunto da sociedade”.
Não sei se foi algum problema de tradução, porém Angel Pardo foi peremptório:
“Os inspectores estão neste momento por várias regiões de Espanha” (as permissões de abertura no país vizinho variam de região para região), dizendo que assim que possível estarão em Portugal e que se irão repartir pelos dois países até Outubro sem paragens no Verão. Por cá, serão dois portugueses e quatro galegos, auxiliados por inspectores de outros países, tal como aconteceu no ano passado, segundo informou.
Outra questão que se colocou foi a da continuação ou não dos guias em papel. É sabido que nos últimos anos a Michelin tem investido cada vez mais recursos em empresas e em versões digitais do guia. Porém, na semana passada, segundo notícia do New York Times, houve uma novidade. Foi comunicado que os guias das várias cidades norte-americanas, a lançar em breve, seriam apenas em versão digital: “nenhum guia vermelho está sendo impresso, nem consta que será no futuro”, refere a autora da notícia, Florence Fabricant.
Angel Pardo diz não ter indicações a esse respeito, mas não esconde que cada vez mais a aposta é no digital, referindo mesmo que as vendas têm vindo em declínio. “Não tenho os números comigo, mas no ano passado imprimimos oito, nove mil exemplares” da edição Ibérica. Segundo ele, num futuro próximo, a tendência é que se imprimam apenas “alguns exemplares para colecionadores ou para quem queira mesmo ter o guia em papel”.
A verdade é que já hoje em dia toda a informação (ou muita dela) que consta nos guias de papel está publicada gratuitamente no site da Michelin ou em aplicações para dispositivos móveis, com todas a funcionalidade que estes meios proporcionam, como a definição de percursos, mapas digitais, a escolha de restaurantes mais próximos, ou a reserva de mesa.
Aliás, no site global da Michelin, a estratégia para a área de mobilidade (onde se englobam os guias gastronómicos, os de viagens e os mapas) é clara: “continuamos a expandir nossa oferta de serviços, especialmente online, para aprimorar ainda mais as experiências de mobilidade de nossos clientes”. Ainda há muitas dúvidas quanto ao modelo de negócio e à sua rentabilidade, mas não havia uma outra hipótese se não uma fuga para a frente. “Estamos a tentar nos adaptar a este novo mundo digital de conteúdos gratuitos”, admitia um dos responsáveis da empresa, em 2012
Foi nesse sentido, no que diz respeito apenas a esta área, que em 2017 a empresa adquiriu uma participação na Wine Advocate de Robert Parker, bem como no informal guia francês Fooding Guide – uma quase antítese do Guia Michelin.
O mesmo espírito esteve na base da aquisição das plataformas de reservas de restaurantes BookaTable, em Inglaterra, Restaurantes.com, em Espanha e também o site de reserva de hotéis Tablet.com.
A divisão dos Guias Michelin tem vindo também a desenvolver o negócio das galas e da expansão para novos territórios, arrastando sempre uma certa polémica, mas a área em grande ebulição é mesmo a referida acima. É que em 2019, a Michelin acabaria por vender as duas primeiras plataformas ao grupo Tripadvisor, que as juntou ao The Fork e expandiu a vários países europeus. Além da compra, a empresa de conteúdos publicados pelos próprios usuários/consumidores (também aqui o oposto do guia vermelho) estabeleceu um acordo com o Guia Michelin para poder utilizar em paralelo as suas classificações (Estrelas, prato Michelin, bib gourmand, etc) ao lado de cada estabelecimento expandindo e popularizando o selo da marca Michelin junto de públicos mais jovens.
No entanto, ao que parece, nenhuma destas mudanças influenciam, na sua essência, as classificações e os conteúdos dos vetustos guias vermelhos, que por mais que se aproximem de uma certa contemporaneidade, de uma maior aposta em restaurantes mais simples (os bib gourmand), ou mais sustentáveis (atribuindo estrelas verdes), dificilmente deixarão de privilegiar um certo luxo e um tipo de cozinha mais perfecionista e afrancesada. Seja em Paris, São Paulo, Tóquio… ou Valência.
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