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Daniel Humm não quer que o “melhor restaurante do mundo” volte a ser o que era

Há uma pergunta no ar que tem sido recorrente nos últimos meses: voltará tudo a ser como era antes da pandemia? A questão tem-se colocado a vários níveis na sociedade, nomeadamente, no sector da alimentação e, por sua vez, no meio gastronómico e da restauração. Dizem uns, que um certo sector da restauração, com os seus chefes famosos à frente, terá cada vez mais um papel a desempenhar em termos de sustentabilidade e de responsabilidade social. Porém, há quem ache que nada de muito significativo irá mudar, que a memória é curta e que, portanto, de um modo geral, a médio prazo, tudo acabará por voltar ao que era antes – com mais ou menos máscaras à mão.

Daniel Humm, sete vezes vencedor dos James Beard Foundation Awards (os principais prémios norte-americanos de gastronomia), proprietário e chef do Eleven Madison Park (EMP) – melhor restaurante do mundo em 2017 do 50Best e detentor de 3 estrelas Michelin há vários anos – faz parte do primeiro grupo. Esta segunda-feira foi notícia que o restaurante, com reabertura prevista para 10 de Junho, iria deixar de servir carne ou pescado. A notícia foi dada pelo New York Times e publicada pelo próprio Daniel Humm no site do restaurante bem como na sua conta do Instagram. Porém, o seu comunicado, que traduzo abaixo, vai mais além do que essa premissa:  

“Por estes dias, no ano passado, tivemos que despedir a maior parte de nossa equipa e não sabia se voltaria a existir o Eleven Madison Park (EMP). Porém, mantivemos uma pequena equipa empregada e, com o seu notável esforço, juntamente com a @rethinkfood, preparámos cerca de um milhão de refeições para nova-iorquinos em insegurança alimentar. Vi a magia da comida de uma maneira totalmente nova e também vi um lado diferente da nossa cidade. Hoje, eu amo Nova Iorque mais do que nunca.

Ficou claro, para mim, que esse trabalho se deve tornar a pedra basilar do nosso restaurante, então evoluímos nosso modelo de negócios. Cada jantar que comprar no EMP irá permitir-nos fornecer 5 refeições para nova-iorquinos com necessidades – entregues pelo Eleven Madison Truck, que é operada pela nossa equipa. É um ecossistema circular onde os nossos hóspedes, a nossa equipa e os nossos fornecedores participam.

Quando começamos a pensar em reabrir o Eleven Madison Park, percebemos que não foi apenas o mundo que mudou, nós também mudámos. Sempre agimos com sensibilidade ao impacto sobre o que está à nossa volta, mas ficou claro que o sistema alimentar actual não é sustentável. Sabíamos que não podíamos abrir o mesmo restaurante.

Com isso em mente, estou entusiasmado por anunciar que vamos servir um menu ‘plant based’, no qual não usaremos nenhum produto de origem animal.

Prometemos a nós mesmos que só mudaríamos de direção se a experiência fosse tão memorável quanto antes. Sinto-me mais inspirado por pratos focados em vegetais e naturalmente gravitei em direção a uma dieta mais baseada neles. Às vezes fico acordado no meio da noite a pensar no risco que corremos ao abandonar os pratos que um dia nos definiram. Porém, depois volto para a cozinha e vejo o que temos criado. O que a princípio parecia limitante começou a ser libertador e estamos apenas a explorar à superfície. Acreditamos que este é um risco que vale a pena correr.

É hora de redefinir o luxo como uma experiência que serve a um propósito maior e mantém uma ligação real com a comunidade. A experiência de um restaurante é mais do que o que está no prato. A essência do EMP está mais forte do que nunca. Mal podemos esperar para que possa experimentar este novo capítulo”.

Vista da sala do EMP

O chef  suíço radicado nos Estados Unidos desde 2003, não é o primeiro a navegar pelas águas das causas sociais, nem tão pouco é o primeiro restaurante de topo a erradicar os produtos animais das suas propostas. Aliás, na última década foram poucos os chefes de renome mundial que não o fizeram, num ou noutro momento, de uma forma mais esporádica ou contínua, com mais ou menos substância ou propósito (mais em termos de causas socio-ambientais, do que na exclusão de carne nos menus – embora haja vários exemplos também neste caso) – de José Andrés, aos irmãos Roca, de Massimo Bottura a Rene Redzepi, de Alain Passard a Dominique Crenn.

Porém, o statement e as acções mencionadas por Daniel Humm, além de um impacto específico a nível local, junto dos mais necessitados, têm um potencial de alcance mais amplo que poderão levar outros a seguir-lhes os passos. No artigo do New York Times, Ruth Reichl, a mítica crítica de restaurantes do jornal de 1993 a 1999, disse que o exemplo de Humm “pode influenciar a direção da culinária americana nos próximos anos”.

Existe ainda um lado simbólico que se pode ler nas entrelinhas, nesta nova proposta do EMP em direcção a uma corrente mais humanista e com preocupações ambientais – que é anterior à pandemia, mas que esta ajudou a evidenciar. É que ao contrário de José Andrés, o suíço nunca se apresentou como um imigrante. Ele opera no centro do furacão, numa das zonas mais ricas do planeta e num dos países mais poluidores, onde consumir carne é algo mais sagrado do que a permissão de porte de arma e onde o dinheiro é mais venerado para muitos do que qualquer valor ético-moral. Todavia, em nenhum momento do seu comunicado Daniel Humm fala em abandonar o luxo, mas sim reinventá-lo. Aliás, o menu continuará a custar os mesmos 335 dólares (incluindo serviço/gratificação).

Resta saber se os clientes estarão na mesma comprimento de onda, como como questiona Jay Rayner, o conhecido crítico do Observer e do Guardian, citado no mesmo artigo do NYT: “Os chefs devem, obviamente, continuar a buscar os seus ingredientes de forma responsável, de acordo com a emergência climática. Porém, no final do dia, continuas a cozinhar para pessoas ricas e podes questionar o seu comprometimento com estes assuntos.”

Os mais cínicos vão dizer que é tudo blá blá, que não passa de uma acção de marketing de um privilegiado que cozinha para super-privilegiados, que agora quer fazer caridadezinha e vestir uma casaca verde, mas quando começar as ver os dólares a fugirem voltará ao mundo real. É possível, afinal, tal como os haters gonna hate, os cínicos serão sempre cínicos.

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