Como em todo processo criativo, seja uma pintura, uma musica ou um romance, existe sempre uma questão – uma fagulha que seja – que impulsiona o agente criador no sentido de se lançar ao desconhecido mar por cujos caminhos ele percorrerá no trabalho criativo. Ainda que seja comum que todo trabalho de criação cultural passe, necessariamente, pela apropriação de um ferramental léxico – de uma linguagem, uma forma de comunicação –, ou seja, do ferramental que o autor escolhe para criar, e através do qual ele expressará uma leitura subjetiva de uma realidade e de um conjunto de experiências e um repertório que é seu apenas, é verdade também que o autor pode concentrar seus esforços em certos aspectos da criação, de acordo com seu viés criativo.
Enquanto há autores de romances cujo trabalho minucioso está focado na elaboração de uma linguagem única, cuja artesanalidade na composição do texto salta aos olhos do leitor, há, por sua vez, autores que são lembrados por composições cuja estrutura da obra é única. Há ainda, evidentemente, autores cujo trabalho se concentra na elaboração de enredos surpreendentes que cativam o leitor. Isso não quer dizer, todavia, que os mesmos não utilizem as outras ferramentas bem.
Ora, mas por que gastar tanta energia falando tudo isso em um artigo cujo foco deveria estar, evidentemente, na comida? Parece importante elaborar com mais cuidado a análise sobre o processo criativo dos restaurantes. Se o final da década de 1990 e o começo dos anos 2000 produziram uma certa homogeneização nas tendências dos restaurantes de vanguarda, que se espelhavam e se apropriavam de uma caixa de ferramentas que se expandia a cada ano por conta do trabalho criativo de chefs como os irmãos Adrià e o inglês Blumenthal, o declínio desse movimento enquanto tendência hegemónica fez com que viesse à tona o trabalho criativo de outros cozinheiros, cujo foco não repousava apenas na inovação de técnicas e na experiência estética – e gustativa – do comensal. Ocorreu um processo de descentralização criativa plural.
Mesmo o principal movimento surgido nesse momento, aquele liderado pela cozinha nórdica, tendo à frente o restaurante dinamarquês Noma, não conseguiu provocar tamanha homogeneização no universo criativo das cozinhas. Nesse sentido, é certo também que grande parte daquilo que definimos como pressupostos do movimento nórdico, ao contrario do que acontecia com o caso da chamada cozinha “molecular”, estava calcado em princípios e diretrizes que podiam ser aplicados em diversos lugares sem, no entanto, determinar tão forçosamente o caminho criativo de um restaurante. Evidentemente certas soluções na maneira de empratar, na formulação estética dos pratos, foram copiadas aqui e ali. Assim como, da mesma maneira, o espaço dado ao trabalho criativo em torno da fermentação se expandiu e passou a ser, em algumas ocasiões, exaustivamente explorado. Mas, ainda assim, essa tendência não conseguiu produzir homogeneização semelhante àquela produzida pelo movimento anterior.
Um dos prato emblemático do Noma
Por outro lado, os princípios que nortearam a criatividade do movimento nórdico se impuseram com muito mais sucesso. Muito embora fossem, em parte, um resgate de maneiras de fazer que a humanidade havia constituído ao longo dos séculos na tarefa central de sua existência – que é a de adaptar-se à natureza à sua volta e produzir dela seu alimento –, o movimento nórdico reuniu em sua carta de princípios temas como a obtenção de alimentos locais, o uso de orgânicos, a utilização de todo o animal e não apenas dos cortes centrais e mais valiosos, o uso das plantas desde a raiz ate as suas flores, a realização dos trabalhos de transformação intermediária (como as mais diversas fermentações, salgas e afins) dentro da cozinha do restaurante e o trabalho mais próximo com produtores e colectores de alimentos, entre outros. Princípios estes que se voltam para a elaboração de uma relação um pouco mais harmoniosa com o ambiente à volta do cozinheiro, diminuindo a produção de desperdício, o transporte de alimentos e, ao mesmo tempo, impondo limites naturais suscitados pela necessária preponderância de ingredientes obtidos localmente. Por certo, nenhum destes princípios, isoladamente, podem ser considerados uma novidade na historia da humanidade – e tão pouco da cozinha –, mas é certo que a reunião e a declaração destes princípios como conjunto fez do movimento nórdico a ponta de lança criativa do novo milénio, sobretudo na segunda década.
um novo encontro da comida com o vinho
O movimento nórdico abraçou também uma outra tendência que se desenvolvia paralelamente à historia da comida, aquilo que se convencionou chamar de vinho natural. As décadas de 1980 e 1990 foram marcadas pela expansão do mercado global de vinho, e em especial do mercado norte americano. Essa expansão foi acompanhada pelo surgimento de guias e revistas internacionais especializadas, que passaram a fornecer classificações dos vinhos através de uma pontuação (em geral de 0 a 100).
Esse fenómeno fez com que se sedimentassem como modelos de referência para a análise qualitativa certos padrões de gosto e forma, resultantes de determinados métodos produtivos e de determinadas uvas e regiões, que refletiam em grande parte a preferência do mercado norte americano. Essa sedimentação acabou por forçar produtores, mais suscetíveis às oscilações de mercado, a padronizar métodos produtivos e a repetir maneiras de produzir das regiões de preferência do mercado e dos críticos. Nesse sentido, o modelo bordalês se impôs: vinhos com evidente extração, com alta concentração de fruta e maior nível alcóolico.
Para isso, muitas vezes produtores de países tradicionais, como Itália, Portugal e Espanha, importaram castas francesas cujo uso não era tradicional naquelas terras, com o intuito de provocar o efeito desejado pelo mercado internacional. Em outras ocasiões, produtores passaram a importar as próprias leveduras que fermentam o vinho, tentando obter assim vinhos cujo sabor se assemelhasse ainda mais aos padrões estabelecidos pela crítica internacional. Houve ainda a ascensão de enólogos consultores, que se converteram quase que em “gurus” da vinificação, que passaram a produzir vinhos para diversos rótulos, em diversos países e continentes, sempre no intuito de garantir uma certa padronização do gosto. Traços característicos – e bastante pronunciados – de envelhecimento em barricas de 225 litros de carvalho novo (em geral francês ou americano), passaram a ser notados em vinhos de praticamente toda a parte.
A reação a esse processo de industrialização e padronização do vinho não tardou. Pequenos produtores, em diversos países do continente europeu, passaram a retomar maneiras de produção tradicionais e mais artesanal, carregando a bandeira da agricultura orgânica e da baixa intervenção no processo de produção do vinho após a colheita: sobretudo no que tange à adição de leveduras trazidas de outras partes, no uso de madeira nova e na adição de sulfitos em grandes quantidades. A adição de sulfitos – ou anidro sulfuroso – não era um processo propriamente novo, desde o século XV[1]há registros documentais da adição de enxofre no vinho para evitar sua oxidação precoce, seja no processo de fermentação, seja no processo de envase da bebida. Com a expansão do mercado e das exportações na segunda metade do século XX, esse uso passou a ser sobredosado, produzindo efeitos colaterais no sabor e na textura da bebida. A recusa a esses métodos passou a ser característica fundamental do movimento. Houve também o resgate, por parte dos produtores, dos princípios da Biodinâmica – delineados um século antes por Rudolf Steiner.
Na garrafeira do Nome, uma pequena colecção de vinhos de Pierre Overnoy, do Jura, um dos precursores dos pais dos vinhos naturais
A emergência de jovens produtores comprometidos com essa iniciativa ganhou o reforço de produtores mais velhos cujas praticas naturalmente já se identificavam com essa tendência. Regiões cuja produção era até então voltada para suprir mercado local ganharam visibilidade: o Jura francês, o Carso esloveno, a Estíria austríaca e a Geórgia (tida por muitos como berço do vinho no mundo) tornaram-se lugares atrativos no meio dos novos viticultores, e de consumidores de vinho mais abertos às novidades. O movimento da restauração nórdico logo abraçou essa bandeira – e esses produtores – trazendo para a carta de vinhos dos restaurantes esses rótulos, propondo harmonizações para o seus menu degustação com eles. Esses vinhos eram feitos com princípios que se identificavam com as bandeiras levantados pelos cozinheiros da região e, mais do que isso, traziam um perfil de sabor mais plural, esbanjando acidez e vivacidade – que muito combinavam com os perfis de sabor desses restaurantes.
Não demorou para o consumo desses vinhos se estender aos bares e restaurantes mais simples da região e, com o sucesso do movimento nórdico, converter-se em tendência internacional. Restaurantes de novos cozinheiros, influenciados pelo movimento nórdico, passaram a adotar esses rótulos. Na França a expansão da Bistronomie, movimento liderado por restaurantes jovens que buscavam renovar a cena com menus mais leves, menos formais, propondo maior uso de vegetais, converteu esses vinhos em linguagem predominante em muitos dos novos lugares mais incensados da cidade de Paris.
A ascensão do movimento nórdico e seu sucesso, e a adesão destes novos restaurantes ao crescente movimento do vinho natural, pode ser entendido como um importante momento de reversão nas tendências que se consolidaram na década de 1990. De um lado, um conjunto de princípios que deveriam apontar, como uma estrela guia, para novos caminhos na cozinha contemporânea, e de outro, uma pluralização das possibilidades criativas, respeitando características locais das mais diversas partes do globo – tudo isso acompanhado por semelhante movimento do mercado vitivinícola – fez com que o mercado de comida e de vinhos rejuvenescesse, ganhando mais dinamismo com a adesão de jovens de classes medias e altas na Europa e nos EUA – e de classe alta nos países periféricos.
Essa reversão significou também a abolição do formalismo enquanto tendência hegemónica no universo global da comida e do vinho, abrindo espaço para a diversidade e multiplicidade de vozes oriundas de regiões diversas. No que tange à comida, a crítica especializada acabou por aderir mais rapidamente às novas tendências, mas no universo do vinho ainda pode ser observada uma divisão geracional entre uma parcela que abraçou as mudanças e outra que insiste em rejeitá-la – muitas vezes sem ao mesmo compreender seu conteúdo e importância. De qualquer maneira, princípios voltados para o respeito ao meio ambiente, às culturas locais e às formas tradicionais de produção de alimentos acabaram por soltar as amarras formais da criatividade – proporcionando uma ilusória sensação de uma “tendência naturalista”. O que houve, antes de mais nada, foi um reencontro com o dinamismo e as potencialidades da cultura, naquilo que lhe é mais essencial: a diversidade humana.
[1] JOHNSON, Hugh. A História do Vinho, São Paulo, Cia. das Letras, 1999, p. 138.
Nota: Este é o segundo de quatro textos sobre o tema a publicar pelo autor
João Grinspum Ferraz é Doutor em História e mestre em Ciências Políticas. Actua como pesquisador e professor, com foco em História da Cultura. Trabalha em projectos sobre a cultura brasileira desde 2005, em 2008 foi curador do Museu do Pão de Ilópolis (RS) e em 2012 foi co-curador da exposição “Histoires de Voir, Show and Tell” na Fondation Cartier pour l’art Contemporain, em Paris. Desde 2014 dedica-se também à pesquisa na área de cultura e alimentação. Criou e dirigiu o documentário “Behind the Plate” (“A Terra e o Prato”).
João Grinspum Ferraz (texto e fotos)
Como em todo processo criativo, seja uma pintura, uma musica ou um romance, existe sempre uma questão – uma fagulha que seja – que impulsiona o agente criador no sentido de se lançar ao desconhecido mar por cujos caminhos ele percorrerá no trabalho criativo. Ainda que seja comum que todo trabalho de criação cultural passe, necessariamente, pela apropriação de um ferramental léxico – de uma linguagem, uma forma de comunicação –, ou seja, do ferramental que o autor escolhe para criar, e através do qual ele expressará uma leitura subjetiva de uma realidade e de um conjunto de experiências e um repertório que é seu apenas, é verdade também que o autor pode concentrar seus esforços em certos aspectos da criação, de acordo com seu viés criativo.
Enquanto há autores de romances cujo trabalho minucioso está focado na elaboração de uma linguagem única, cuja artesanalidade na composição do texto salta aos olhos do leitor, há, por sua vez, autores que são lembrados por composições cuja estrutura da obra é única. Há ainda, evidentemente, autores cujo trabalho se concentra na elaboração de enredos surpreendentes que cativam o leitor. Isso não quer dizer, todavia, que os mesmos não utilizem as outras ferramentas bem.
Ora, mas por que gastar tanta energia falando tudo isso em um artigo cujo foco deveria estar, evidentemente, na comida? Parece importante elaborar com mais cuidado a análise sobre o processo criativo dos restaurantes. Se o final da década de 1990 e o começo dos anos 2000 produziram uma certa homogeneização nas tendências dos restaurantes de vanguarda, que se espelhavam e se apropriavam de uma caixa de ferramentas que se expandia a cada ano por conta do trabalho criativo de chefs como os irmãos Adrià e o inglês Blumenthal, o declínio desse movimento enquanto tendência hegemónica fez com que viesse à tona o trabalho criativo de outros cozinheiros, cujo foco não repousava apenas na inovação de técnicas e na experiência estética – e gustativa – do comensal. Ocorreu um processo de descentralização criativa plural.
Mesmo o principal movimento surgido nesse momento, aquele liderado pela cozinha nórdica, tendo à frente o restaurante dinamarquês Noma, não conseguiu provocar tamanha homogeneização no universo criativo das cozinhas. Nesse sentido, é certo também que grande parte daquilo que definimos como pressupostos do movimento nórdico, ao contrario do que acontecia com o caso da chamada cozinha “molecular”, estava calcado em princípios e diretrizes que podiam ser aplicados em diversos lugares sem, no entanto, determinar tão forçosamente o caminho criativo de um restaurante. Evidentemente certas soluções na maneira de empratar, na formulação estética dos pratos, foram copiadas aqui e ali. Assim como, da mesma maneira, o espaço dado ao trabalho criativo em torno da fermentação se expandiu e passou a ser, em algumas ocasiões, exaustivamente explorado. Mas, ainda assim, essa tendência não conseguiu produzir homogeneização semelhante àquela produzida pelo movimento anterior.
Por outro lado, os princípios que nortearam a criatividade do movimento nórdico se impuseram com muito mais sucesso. Muito embora fossem, em parte, um resgate de maneiras de fazer que a humanidade havia constituído ao longo dos séculos na tarefa central de sua existência – que é a de adaptar-se à natureza à sua volta e produzir dela seu alimento –, o movimento nórdico reuniu em sua carta de princípios temas como a obtenção de alimentos locais, o uso de orgânicos, a utilização de todo o animal e não apenas dos cortes centrais e mais valiosos, o uso das plantas desde a raiz ate as suas flores, a realização dos trabalhos de transformação intermediária (como as mais diversas fermentações, salgas e afins) dentro da cozinha do restaurante e o trabalho mais próximo com produtores e colectores de alimentos, entre outros. Princípios estes que se voltam para a elaboração de uma relação um pouco mais harmoniosa com o ambiente à volta do cozinheiro, diminuindo a produção de desperdício, o transporte de alimentos e, ao mesmo tempo, impondo limites naturais suscitados pela necessária preponderância de ingredientes obtidos localmente. Por certo, nenhum destes princípios, isoladamente, podem ser considerados uma novidade na historia da humanidade – e tão pouco da cozinha –, mas é certo que a reunião e a declaração destes princípios como conjunto fez do movimento nórdico a ponta de lança criativa do novo milénio, sobretudo na segunda década.
um novo encontro da comida com o vinho
O movimento nórdico abraçou também uma outra tendência que se desenvolvia paralelamente à historia da comida, aquilo que se convencionou chamar de vinho natural. As décadas de 1980 e 1990 foram marcadas pela expansão do mercado global de vinho, e em especial do mercado norte americano. Essa expansão foi acompanhada pelo surgimento de guias e revistas internacionais especializadas, que passaram a fornecer classificações dos vinhos através de uma pontuação (em geral de 0 a 100).
Esse fenómeno fez com que se sedimentassem como modelos de referência para a análise qualitativa certos padrões de gosto e forma, resultantes de determinados métodos produtivos e de determinadas uvas e regiões, que refletiam em grande parte a preferência do mercado norte americano. Essa sedimentação acabou por forçar produtores, mais suscetíveis às oscilações de mercado, a padronizar métodos produtivos e a repetir maneiras de produzir das regiões de preferência do mercado e dos críticos. Nesse sentido, o modelo bordalês se impôs: vinhos com evidente extração, com alta concentração de fruta e maior nível alcóolico.
Para isso, muitas vezes produtores de países tradicionais, como Itália, Portugal e Espanha, importaram castas francesas cujo uso não era tradicional naquelas terras, com o intuito de provocar o efeito desejado pelo mercado internacional. Em outras ocasiões, produtores passaram a importar as próprias leveduras que fermentam o vinho, tentando obter assim vinhos cujo sabor se assemelhasse ainda mais aos padrões estabelecidos pela crítica internacional. Houve ainda a ascensão de enólogos consultores, que se converteram quase que em “gurus” da vinificação, que passaram a produzir vinhos para diversos rótulos, em diversos países e continentes, sempre no intuito de garantir uma certa padronização do gosto. Traços característicos – e bastante pronunciados – de envelhecimento em barricas de 225 litros de carvalho novo (em geral francês ou americano), passaram a ser notados em vinhos de praticamente toda a parte.
A reação a esse processo de industrialização e padronização do vinho não tardou. Pequenos produtores, em diversos países do continente europeu, passaram a retomar maneiras de produção tradicionais e mais artesanal, carregando a bandeira da agricultura orgânica e da baixa intervenção no processo de produção do vinho após a colheita: sobretudo no que tange à adição de leveduras trazidas de outras partes, no uso de madeira nova e na adição de sulfitos em grandes quantidades. A adição de sulfitos – ou anidro sulfuroso – não era um processo propriamente novo, desde o século XV[1]há registros documentais da adição de enxofre no vinho para evitar sua oxidação precoce, seja no processo de fermentação, seja no processo de envase da bebida. Com a expansão do mercado e das exportações na segunda metade do século XX, esse uso passou a ser sobredosado, produzindo efeitos colaterais no sabor e na textura da bebida. A recusa a esses métodos passou a ser característica fundamental do movimento. Houve também o resgate, por parte dos produtores, dos princípios da Biodinâmica – delineados um século antes por Rudolf Steiner.
A emergência de jovens produtores comprometidos com essa iniciativa ganhou o reforço de produtores mais velhos cujas praticas naturalmente já se identificavam com essa tendência. Regiões cuja produção era até então voltada para suprir mercado local ganharam visibilidade: o Jura francês, o Carso esloveno, a Estíria austríaca e a Geórgia (tida por muitos como berço do vinho no mundo) tornaram-se lugares atrativos no meio dos novos viticultores, e de consumidores de vinho mais abertos às novidades. O movimento da restauração nórdico logo abraçou essa bandeira – e esses produtores – trazendo para a carta de vinhos dos restaurantes esses rótulos, propondo harmonizações para o seus menu degustação com eles. Esses vinhos eram feitos com princípios que se identificavam com as bandeiras levantados pelos cozinheiros da região e, mais do que isso, traziam um perfil de sabor mais plural, esbanjando acidez e vivacidade – que muito combinavam com os perfis de sabor desses restaurantes.
Não demorou para o consumo desses vinhos se estender aos bares e restaurantes mais simples da região e, com o sucesso do movimento nórdico, converter-se em tendência internacional. Restaurantes de novos cozinheiros, influenciados pelo movimento nórdico, passaram a adotar esses rótulos. Na França a expansão da Bistronomie, movimento liderado por restaurantes jovens que buscavam renovar a cena com menus mais leves, menos formais, propondo maior uso de vegetais, converteu esses vinhos em linguagem predominante em muitos dos novos lugares mais incensados da cidade de Paris.
A ascensão do movimento nórdico e seu sucesso, e a adesão destes novos restaurantes ao crescente movimento do vinho natural, pode ser entendido como um importante momento de reversão nas tendências que se consolidaram na década de 1990. De um lado, um conjunto de princípios que deveriam apontar, como uma estrela guia, para novos caminhos na cozinha contemporânea, e de outro, uma pluralização das possibilidades criativas, respeitando características locais das mais diversas partes do globo – tudo isso acompanhado por semelhante movimento do mercado vitivinícola – fez com que o mercado de comida e de vinhos rejuvenescesse, ganhando mais dinamismo com a adesão de jovens de classes medias e altas na Europa e nos EUA – e de classe alta nos países periféricos.
Essa reversão significou também a abolição do formalismo enquanto tendência hegemónica no universo global da comida e do vinho, abrindo espaço para a diversidade e multiplicidade de vozes oriundas de regiões diversas. No que tange à comida, a crítica especializada acabou por aderir mais rapidamente às novas tendências, mas no universo do vinho ainda pode ser observada uma divisão geracional entre uma parcela que abraçou as mudanças e outra que insiste em rejeitá-la – muitas vezes sem ao mesmo compreender seu conteúdo e importância. De qualquer maneira, princípios voltados para o respeito ao meio ambiente, às culturas locais e às formas tradicionais de produção de alimentos acabaram por soltar as amarras formais da criatividade – proporcionando uma ilusória sensação de uma “tendência naturalista”. O que houve, antes de mais nada, foi um reencontro com o dinamismo e as potencialidades da cultura, naquilo que lhe é mais essencial: a diversidade humana.
[1] JOHNSON, Hugh. A História do Vinho, São Paulo, Cia. das Letras, 1999, p. 138.
Nota: Este é o segundo de quatro textos sobre o tema a publicar pelo autor
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João Grinspum Ferraz é Doutor em História e mestre em Ciências Políticas. Actua como pesquisador e professor, com foco em História da Cultura. Trabalha em projectos sobre a cultura brasileira desde 2005, em 2008 foi curador do Museu do Pão de Ilópolis (RS) e em 2012 foi co-curador da exposição “Histoires de Voir, Show and Tell” na Fondation Cartier pour l’art Contemporain, em Paris. Desde 2014 dedica-se também à pesquisa na área de cultura e alimentação. Criou e dirigiu o documentário “Behind the Plate” (“A Terra e o Prato”).
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