Com alguma frequência, por alturas do lançamento do Guia Michelin França, costumam surgir notícias bombásticas, sobretudo sobre restaurantes ou chefes de renome que caem do pedestal do guia vermelho. Em tempos, as más novas tinham origem em (supostas) fugas de informação, mas em casos mais recentes, como agora, a fonte tem sido o próprio guia. No fundo, como a cerimónia e os comunicados em que anunciam os resultados só falam de céu azul, a estratégia não deixa de ser conveniente à marca: afinal, assim, as más noticias vêm pela boca de outros, fazem despertar antecipadamente o interesse pelo guia e, embora não consigam controlar o tom negativo da informação, não deixam de passar uma certa imagem de rigor.
Mas vamos então ao caso deste ano.
Há uma semana, através da Agência France Press, tendo como fonte oficial o próprio guia, foi anunciado que o restaurante de Guy Savoy, em Paris, seria despromovido de 3 estrelas para duas. O bruaá teve enorme ressonância por se tratar de uma das maiores figuras da cozinha francesa, eleito melhor chef do mundo por 6 anos consecutivos pelo francesíssimo ranking do La Liste (a resposta francesa à lista do World 50 Best onde os restaurantes franceses nunca ficam muito bem classificados). Passadas umas horas, a nuvem negra viria a a adensar-se com a notícia que havia um outro restaurante que iria perder, igualmente, a terceira estrela, o de Christopher Coutanceau, em La Rochelle, no sudoeste de França.
Para menorizar o impacto negativo, mas não a carga dramática, a notícia plantada pela Michelin mencionava, inclusive, que o director da publicação Gwendal Poullennec se tinha feito à estrada, viajando por 4 horas, para explicar as razões ao chef Coutanceau (algo que já tinha feito antes, com Savoy), preocupado com as questões de saúde mental que levaram no passado ao suicídio de chefs, em situações idênticas.
Sem mencionar publicamente as razões da perda da terceira estrela (ainda que, ao que parece, as mesmas foram transmitidas aos chefs) a notícia serviu, também, para explicar que este tipo de decisões não é feito de ânimo leve. Segundo Poullennec, “são restaurantes excepcionais, por isso, como podem imaginar, estas decisões são cuidadosamente consideradas, apoiadas por numerosas visitas dos nossos inspectores ao longo do ano”, justificando ainda que “para decisões tão importantes, contamos não só com inspectores franceses, mas também com alguns de outros países”.
Mas havia mais, segundo a notícia – que alguns meios de comunicação social replicaram depois em tons mais carregados – pelo menos outros vinte restaurantes deveriam perder as suas estrelas, sendo que cinco deles passariam de duas para uma. A razão apontada devia-se ao facto da Michelin ter “congelado” as despromoções durante a pandemia e que agora deixaria de haver essa benevolência – o que nem é completamente verdade porque, no guia de França do ano passado, houve 55 restaurantes perderam estrelas, ainda que alarga maioria tivesse sido por fecho ou mudança de conceito.
Com este acrescento a Michelin voltava a querer passar uma imagem de rigor e independência, como se depreende de uma outra tirada de Poullennec: “estamos plenamente conscientes do impacto das nossas decisões para os restaurantes em causa, mas os nossos leitores esperam que as nossas recomendações sejam sérias e fiáveis, a fim de os orientar nas suas escolhas”.
O anúncio do Guia Michelin França 2023 com um novo 3 estrelas
Entretanto, esta segunda-feira, 6 de Março, foi anunciado o novo guia. Como calculava, o comunicado só menciona os aspectos positivos e como a poeira ainda não tinha assentado soou-me algo cínico ler as novas declarações do diretor internacional dos guias:
“Com 44 novos restaurantes com estrela, 37 dos quais situados fora da área metropolitana de Paris, a seleção de 2023 confirma a excelência, a criatividade e o compromisso que abundam no mundo da gastronomia francesa”, assinalou Gwendal Poullennec.
Ainda por cima, a bomba que representou a perda da 3ª estrela de Guy Savoy (e, em menor escala, também a de Christopher Coutanceau) acabou por retirar impacto à excelente notícia que foi a 3ª estrela atribuída ao excelente La Marine, de Alexandre e Céline Couillon, em Noirmoutier – restaurante que tive a oportunidade de visitar em 2016 (que resultou neste artigo), a propósito do lançamento, na altura, da nova temporada da série Chef’s Table, da Netflix.
De resto, dos cerca três mil restaurantes recomendados no Guia Michelin França 2023 (2962, para ser mais preciso) existem agora 630 restaurantes com estrela (+3 do que no Guia de 2022), enquanto no ano passado os 627 representavam -11 face ao guia do ano anterior.
Afinal a colheita de estrelas não foi assim tão má, ou pelo menos não foi o descalabro que as notícias anteviam. Porém, a razão porque não foi dado logo na altura esse lado de bonança, só Poullennec poderá explicar.
Enfim. Em termos de restaurantes com estrelas, a distribuição faz-se agora da seguinte forma:
. 29 restaurantes com 3*** (1 novo, o La Marine, mas -2, no total, comparado com o guia de 2022)
Nota: apesar de não ter sido noticiado por estes dias, além da mencionada retirada da terceira estrela aos restaurantes de Guy Savoy e Christopher Coutanceau,houve um outro três estrelas a sair do guia, mas neste caso, por encerramento: o Restaurant Christophe Bacquié, próximo de Marselha.
. 75 restaurantes com 2** (4 novos, mas apenas +1, no total, vs 2022)
. 526 restaurantes com 1* (39 novos, mas apenas +4, no total, vs 2022)
Ainda alguns dados curiosos ou de interesse:
. A aposta do guia na atribuição de prémios sustentabilidade continua muito tímida. Há 8 novos restaurantes a conquistarem a estrela verde, num total de 90 restaurantes, o que representa, no total, pouco mais de 3% do número de restaurantes que constam no guia.
. Em relação aos Bib Gourmand (restaurantes até 40€ aconselhados pela sua relação preço/qualidade), há 49 novos espaços a obter a distinção. Porém, o total mantém-se em 419 dado ter havido igual número de restaurantes a perder a referência. Curiosamente, no total, são menos do que o número de restaurantes com 1 estrela.
. O lusodescendente Serge Vieira, do restaurante que leva o seu nome, em Chaudes-Aigues, é um dos 75 restaurantes com duas estrelas, mantendo assim o galardão conquistado há já alguns anos. Vieira mantém ainda a estrela verde.
. O L’Astrance, do reverenciado chef Pascal Barbot, em Paris, volta ao caminho das estrelas, ao conquistar uma. O restaurante, que em 2019 foi notícia por ter perdido a terceira estrela, esteve fechado para remodelação o que o levou a recomeçar o processo todo de novo.
. O belga Mallory Gabsi, de 26 anos, cujo restaurante epónimo, inaugurado em 2022, obteve este ano a sua primeira estrela, o que levou a Michelin atribuir-lhe o Prémio Jovem Chef 2023.
. Por último, destaque, também, para a Michel Troisgros, a quem foi atribuido o Prémio Chef Mentor, pelo seu trabalho “de transformação vanguardista da casa Troisgros de Roanne e pela transmissão dos seus conhecimentos aos seus filhos César e Léo, bem como o apoio a inúmeros talentos ao longo da sua carreira”.
Resta saber, daqui a uns tempos, o que continuará a ter maior impacto, se a perda da 3ª estrela de Savoy e Coutanceau ou se o feito da conquista da mesma por parte de Alexandre Couillon. Mas… siga a Marinha, que em breve haverá mais.
Foto de abertura: emocionado, Alexandre Couillon recebe de Poullennec, a jaleca com as 3 estrelas bordadas no peito, perante o olhar da sua mulher Céline
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