Recordo-me, nos primeiros jantares de adulto emancipado, o “esparguete à carbonara” era um prato popular em casa de amigos e conhecidos. Felizmente não havia italianos entre nós, nem telemóvel e muito menos Instagram. É que na ideia do que poderia ser uma receita de carbonara existiam interpretações tão livres, tão livres, tão livres, que certamente seríamos privados dessa liberdade (ou de qualquer outra) se houvesse uma ligação entre as nossas chaminés e a Embaixada de Itália. Vi e comi de tudo: massa cozida até se desfazer, natas, fiambre, bacon manhoso, parmesão moído… Enfim, uma maravilha… #sóquenão. O trauma foi tal que creio não ter voltado a comer qualquer massa com esse nome durante anos.
Não me recordo quando e onde foi a primeira vez em que vi a luz e para ser sincero, nem é algo com que me cruze com frequência. Porém, cada vez que me serviram um spaghetti a la carbonara confecionado a preceito só não me ajoelhei por uma questão de decência.
O carbonara é um prato da chamada “cozinha pobre” e está ligado aos pastores dos montes Apeninos, próximos de Roma. Com uma ou outra variação confeciona-se essencialmente com quatro ingredientes e uma certa técnica: spaghetti, guanciale (bochecha de porco – e gordura circundante – curada), queijo pecorino, ovo e pimenta preta.
Parece um prato simples de fazer inclusive em casa, mas como qualquer outra receita que envolve gema de ovo, requer alguma perícia, sobretudo no momento em que adiciona à massa a gema misturada com o queijo ralado. Se o esparguete estiver muito quente pode talhar o ovo. Porém, se arrefecer demais, fica enjoativo e com uma consistência desagradável. Há várias dicas para que tal não aconteça: retirar os ovos do frigorífico com antecedência, deixar a massa esfriar durante um minuto ou dois, rezar, saltar quatro vezes apoiado no pé direito enquanto se bate na cabeça*, enfim, cada especialista, dirá o seu truque.
O paulistano João Ferraz, historiador, divulgador de gastronomia e personagem bem conhecida deste mundo do garfo e faca e do Instagram (onde tem mais de 53 mil seguidores), tornou a sua obsessão por este prato num caso sério, ao ponto de ter tornado conhecido pela alcunha Carbonara. A fixação terá começado em 2014 e, desde daí, ele estima já ter cozinhado a receita mais de 600 vezes. João Ferraz tem outras obsessões, como o socarrat, que aprendeu a fazer com Quique Dacosta, mas é pelo carbonara – que hoje em dia já nem faz assim tanto – que muitos se pelam por um convite para jantar em sua casa.
Já me deliciei umas três ou quatro vezes e já ouvi da boca do italiano Marco Ranzetti, chefe do óptimo restaurante Pettirosso, em São Paulo, afirmar que é mesmo muito bom. Consta que Ferraz já o deu a provar a chefes como Virgílio Martinez, Josean Alija, Yannick Alleno, Ana Roš, Renzo Garibaldi, e até já o cozinhou em San Sebastian, em casa de Andoni Luís Aduriz, e ninguém fez cara feia.
E qual o truque de um bom carbonara?
“Olha, controlar a temperatura da massa e da panela na hora de misturar os ovos (gemas) e o queijo. A gema coagula na temperatura alta e o queijo separa a proteína e gordura. Logo você tem que tomar cuidado para não elevar a temperatura da panela. Além disso, o “molho” deve estar aderido à pasta, e não escorrido no prato. Por último, a pimenta preta é fundamental para regular um equilíbrio entre os ingredientes, evitando que fique enjoativo”.
E por acaso, não há por aí uma receita?
Uma não, duas. A do João Ferraz e outra do italiano Eugenio Boer (do restaurante que leva o seu nome, em Milão, e que anteriormente foi chefe, nessa mesma cidade do Essenzia, onde ganhou uma estrela Michelin). Durante a pandemia, João e Eugenio cozinharam as suas versões “ao vivo” no Instagram.
Receita de João Ferraz
Ingredientes:
100g de Spaghetti
60g de Guanciale ou pancetta
4 gemas de ovo
60-80g de queijo pecorino
Pimenta preta
Como fazer:
Enquanto cozinha a massa tostar a pimenta preta a seco e em seguida fritar o guanciale na mesma frigideira. Enquanto isso misturar ovo e o pecorino até ficar uma massa quase sólida. Escorrer a gordura do guanciale (reservar para usar em outra preparação), colocar a massa com um pingo de água na frigideira e com o guanciale, esperar baixar um pouco a temperatura fora do fogo e aí misturar a massa de ovo e queijo com cuidado, até dissolver. Servir!
Receita de Eugenio Boer:
200g spaghetti
150g guanciale
75g pecorino
75g parmigiano
3 gemas de ovo
Pimenta preta
Como fazer:
Enquanto cozinha o spaghetti, fritar o guanciale e misturar os queijos, as gemas de ovo e a pimenta em outro pote à parte. Retirar a gordura da frigideira e fazer uma espécie de zabaione com a massa de queijo e gemas com a gordura que saiu do guanciale. Misturar a massa nessa taça fora do fogo e servir!
Nota: não perguntei a nenhum dos chefes, mas a questão do João referir a pancetta em alternativa ao guanciale se deve ao facto da primeira ser mais fácil de encontrar em São Paulo (inclusive já vi vários chefes dizerem que a substituição bacon é aceitável, à falta de um ou de outra). De igual modo, estou em crer que Eugenio Boer utiliza queijo parmigiano porque no Norte era um queijo mais comum do que o pecorino, que é de Roma, zona onde alegadamente tem origem o prato. Também pode acontecer que esta mistura de dois queijos (o primeiro de leite de vaca e o segundo de ovelha) seja o seu toque de Chef.
E que levou a escrever este texto sobre spaghetti a la carbonara?
Este vídeo:
*saltar quatro vezes apoiado no pé direito enquanto se bate na cabeça na esperança que o ovo não talhe é estúpido. Mas talvez seja uma técnica válida para o caso de ter o ouvido direito entupido. 🙂
Haha gostei ler este post, reencontro-me bastante. Carbonara foi o primeiro prato que aprendi cozinhar em adolescência. Com uma mistura de pasta, bacon, creme freche e ovo conseguia fazer algo delicioso que até a minha mãe aprovou. Um sucesso. #soquenao :)).
Hoje em dia acho que me safo sem nata (muito menos creme freche) . Não costumo prestar atenção a temperatura da panela ou da massa, mas e uma boa dica! O que descobri que adicionar água onde a massa cozeu ajuda obter aquele molho. Mexer freneticamente tb ajuda não coagular . Definitivamente vou experimentar por só gemas e mais que 2. Este vídeo só demonstra que ainda não estou lá. Obrigada pela partilha 🙂
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