A comparação só pode ser feita com as expectativas que assombraram os chefes e responsáveis de restaurantes quando a explosão da pandemia em Portugal obrigou ao fecho de portas e não com iguais períodos de anos anteriores. E a verdade é que – após as reaberturas e quase passado o tempo de Verão – parece que o sentimento geral é de um certo alívio entre os chefes de restaurantes lisboetas de topo que o Mesa Marcada ouviu. Apesar de quebras fortes no número de clientes, muitos consideram que não foi tão mau como temiam e que o aumento considerável da procura por parte dos portugueses compensou de alguma forma a diminuição de turistas estrangeiros. É claro que a incerteza é muita, sobretudo com o receio do que vai acontecer na época baixa turística do Outono/Inverno e com o agravamento de crise económica que se prevê, mas, para já, vai dando para continuar a ter esperança. E fica a boa surpresa da apetência dos clientes portugueses por restaurantes que, para muitos, só interessavam aos turistas.

Entre os primeiros com estrelas Michelin a reabrir (tem duas), esteve o Alma, de Henrique Sá Pessoa, logo em Maio, que reduziu em 50% o número de lugares, de acordo com as restrições impostas pela pandemia, além de criar um menu mais curto e mais barato. “Desde a reabertura que tivemos sempre cheios ao jantar, com muitos clientes portugueses, mas tivemos uma certa quebra aos almoços. Porém, nos meses de Verão, os almoços recuperaram bem, graças sobretudo aos estrangeiros”, diz o chefe, acrescentando que a procura pelo menu que criou foi grande. “Antes, tínhamos cerca de 40% de clientes a pedirem o menu e agora deve ter duplicado”.
Outros restaurantes mais acessíveis de Sá Pessoa em Lisboa, como o Tapisco, que vive muito dos clientes de passagem, sofreram mais, assim como o espaço no Mercado da Ribeira, onde a importância dos turistas estrangeiros era absolutamente determinante e onde houve maior quebra. “Acho que o Mercado vai ter que se transformar, inclusive a nível de preços, que estavam algo inflacionados, para atrair mais portugueses”. Já o Cais da Pedra, que remodelou a oferta, antes muito baseada em hambúrgueres, tem corrido melhor, graças em grande parte à esplanada ao ar livre de que dispõe.

Quem também notou esse fenómeno de maior procura dos restaurantes de topo por parte dos portugueses foi José Avillez no Belcanto (duas estrelas Michelin), embora os turistas estrangeiros continuem a representar uma parte importante da clientela. “Tivemos uma quebra de cerca de 50%, tivemos que tirar mesas, mas está a funcionar razoavelmente bem.”, declara o chefe. Com vários restaurantes espalhados pela zona do Chiado, ele procedeu a uma concentração no Bairro do Avillez (onde passaram a estar o Mini-Bar e a Pizzaria Lisboa) e ao fecho de outros, como o Rei da China, Casa dos Prazeres, Beco e Café Lisboa. O Canto, onde estava o Belcanto original, deverá reabrir com conceito renovado no primeiro trimestre do próximo ano, e o Maré, no Guincho, adiou a sua abertura também para 2021. Mas, apesar de tudo, José Avillez já está mais animado: “É claro que o grupo teve uma quebra forte, mas já dá para pagar as contas e evitar o acúmulo de prejuízos”.

Outro chefe que mantém os projectos de abertura, curiosamente também na zona de Cascais, é Vítor Sobral, que em 2021 deverá inaugurar na zona da lota, em plena vila, um espaço de grande dimensão e ambição – sobre o qual ainda não quer dar detalhes – que terá à frente Luís Espadana, um dos seus principais “braços-direitos”, entretanto regressado de São Paulo. Entre as novidades desta temporada difícil, está também a entrada do conhecido chefe na sociedade do Dom Roger, restaurante de cozinha tradicional portuguesa situado na Av. da República (tinha inicialmente sido contratado só como consultor) para onde deslocou a equipa que trabalhava no seu espaço no Mercado da Ribeira, de onde saiu. Vítor Sobral mantém em Campo de Ourique a Tasca da Esquina e a Peixaria da Esquina, mas saiu da sociedade do Talho da Esquina, recentemente aberto, que já mudou de nome. As Padarias da Esquina continuam, embora o padeiro Mário Rolando se tenha desligado do projecto. “Não dá para comparar com anos anteriores, mas acho que estamos a aguentar razoavelmente bem, o que já não é nada mau”, conclui o chefe.

“Agosto foi uma grande surpresa para nós. Nunca esperei que fosse um mês bom, porque tradicionalmente é um mês de turismo”. Quem o afirma é João Rodrigues, do Feitoria. Reaberto precisamente nesse mês, em que a vinda de ingleses, brasileiros ou americanos estava praticamente vedada, a presença de turistas resumiu-se sobretudo a alemães e espanhóis. Porém, a grande surpresa foram os clientes nacionais. “Tivemos noites cheios só com mesas de portugueses”. Rodrigues conta ainda que de início houve uma maior preferência pela escolha à carta, mas que posteriormente os menus de degustação voltaram a ganhar predominância, quando voltou a haver mais estrangeiros. O Feitoria optou por ter apenas oito mesas disponíveis (das 14 que tinham antes) e todas têm estado ocupadas, dando entre 15 e 26 jantares por noite. A contribuir para o sucesso foi também a acção “Dine & Sleep”, um pacote que engloba estadia e pequeno-almoço no hotel e refeição para dois, no restaurante. “Todas as noites temos uma a duas mesas com esta oferta, que ajuda bastante também na atracção de clientes para o hotel”.
Também em relação ao Rossio Gastrobar, que abriu primeiro, no início de Julho, a afluência tem sido sobretudo ao fim de semana, com as pessoas a preferirem o espaço exterior. “No início sentimos uma quebra em termos de volume de consumo, porque Julho foi mau em termos de turismo, mas tivemos sempre serviço e sempre em crescendo”. (Miguel Pires)

Alexandre Silva é mais um dos chefes de Lisboa que consegue ter uma perspetiva positiva no meio destes tempos de incerteza. O seu Loco (uma estrela Michelin) tem dado cerca de 16 jantares por dia e o Fogo, que levava só três meses aberto quando foi obrigado a fechar, tem funcionado bem ao almoço e jantar, apesar de ter tirado metade dos 70 lugares originais. “Só reabrimos a meio de Agosto e está a correr bem melhor do que eu esperava. Começámos por abrir só quatro dias por semana e já passámos para cinco”, afirma. No Loco, mais uma vez são os portugueses a substituir a clientela estrangeira. “Tínhamos sempre muitas reservas de turistas, às vezes com meses de antecedência, e como os portugueses costumavam deixar sempre para a última hora geralmente já não conseguiam mesa, tanto mais que o restaurante é pequeno. Por isso, dá ideia de que havia muita gente que estava com vontade de vir cá e não conseguia. Agora, já é mais fácil”, explica Alexandre Silva.
Onde a falta de turistas tem sido mais difícil de resolver é no Mercado da Ribeira e o espaço do chefe chegou a ter quebra superior a 80%, embora ultimamente tenha vindo a melhorar. No entanto, não foi preciso dispensar pessoal, algo que Alexandre Silva temia, porque surgiu em Maio o projecto do restaurante Farm to Table, no hotel do Craveiral, em São Teotónio, na costa alentejana, que teve um Verão em grande. “Foi algo que caiu do céu, na hora certa: consegui colocar lá 10 elementos da minha equipa, foi bom em termos financeiros, teve muita procura e eu tive a cabeça ocupada com cozinha, o que me fez muito bem”.

No alto da Torre Vasco da Gama, em Lisboa, Filipe Carvalho, do Fifty Seconds (uma estrela Michelin), o discurso alinha por um tom idêntico: “Se falarmos nas expectativas em relação ao pré-covid estamos abaixo, se a comparação for com o pós-confinamento, estamos acima. Se dantes dávamos uma média de 25 jantares por noite, agora damos uma média de 18, 19”. O restaurante com a assinatura de Martin Berasategui já era muito frequentado por uma clientela nacional e começava a caminhar para ter uma maior presença de estrangeiros. Naturalmente, essa parte acabou por se retrair. “Perdemos o cliente estrangeiro, mas o nosso público português aderiu. Temos um cliente nacional muito bom. Por exemplo há quatro cinco regulares que vêm umas cinco vezes por mês”. Filipe Carvalho tem contado com o apoio dos investidores (o Grupo Sana) que lhe garantiram que os objectivos traçados antes da Covid-19 são para cumprir. Deste modo, conseguiu manter toda a equipa (sala e cozinha) e não teve de fazer alterações nos nível de menu, nem em termos de produto, nem de preço. Aliás, os menus tiveram até uma ligeira actualização, como tinham delineado antes da pandemia. (Miguel Pires)

Menos positivo está Joachim Koerper, do Eleven (uma estrela Michelin), não só porque o restaurante tinha nos turistas estrangeiros a maior parte da clientela, mas também porque os eventos, agora proibidos, eram bastante importantes na facturação. “Os almoços têm sido bons, graças aos clientes portugueses, mas os jantares, apesar de estarem a melhorar um pouco – fizemos um menu especial de 35 euros, sem bebidas, que tem tido procura – ainda estão fracos”, adianta o chefe alemão. O terraço do último piso, os piqueniques no relvado em frente ao restaurante do alto do Parque Eduardo VII e as entregas ao domicílio têm sido factores compensadores. O que tem corrido mesmo bem, tal como tem acontecido com várias unidades do interior, é o restaurante da Herdade da Malhadinha Nova, onde Koerper é consultor há vários anos, que, aliás, acaba de entrar para a prestigiada cadeia Relais & Châteaux.

A tentar manter-se à tona da água está Vincent Farges, no Epur. “Quando caiu a história do covid, não estava a dar muito futuro aos restaurantes Michelin. Percebi que tínhamos que nos reinventar e reinventamo-nos um pouco”. Estiveram parados nos primeiros quinze dias do confinamento, mas surgiram logo depois com um serviço de entrega em casa. “A mim, custa-me muito estar parado e o take-away funcionou muito bem durante esse período”. Porém, a partir do momento que as pessoas voltaram a sair de casa, deixou de haver procura, o que levou Farges a criar outro serviço, o Epur à Janela, que ainda se mantém (de quinta a domingo, das 16h às 19h), com finger food e vinho a copo.
Com uma equipa reduzida (duas pessoas na sala e duas na cozinha), Vincent Farges tenta, no entanto, manter a qualidade. “Não posso desperdiçar o trabalho que tem vindo a ser feito”, afirma. Passou a dar apenas jantares e conta que tem tido as 10 mesas “quase sempre ocupadas”. São principalmente “mesas de dois e raramente grupos” e se antes tinha 60% de turistas e 40% de locais, agora a situação inverteu-se. Talvez por isso, ou porque os clientes “não gastam tanto quanto gastavam”, o menu de três pratos passou a sair mais em detrimento dos maiores. Farges não tem problemas em afirmar que “se continuar assim, sem turistas até final do ano, não faz sentido continuar a perder dinheiro. Por enquanto a facturação não cobre tudo”. A fragilidade da empresa não é de hoje. Primeiro foi longo (demasiado) atraso na abertura e, depois, quando o efeito estrela Michelin os colocou finalmente na rota certa, em termos de sustentabilidade financeira, surge a Covid-19. Tudo isto leva Vincent a desabafar, com algum humor: “vou ter de procurar uma daquelas senhoras que fazem vudu. Só me acontecem coisas destas”. (Miguel Pires)

Já em relação a Kiko Martins, há pontos positivos e negativos. O seu primeiro restaurante O Talho está relativamente bem, tendo o tempo de fecho sido aproveitado para uma remodelação que abrangeu a loja, a sala, agora com um balcão para refeições, e a cozinha. O espaço no El Corte Inglès também compensa, assim como a Cevicheria, embora com menos movimento, que terá uma esplanada na pequena rua em frente, fechada ao trânsito, mas que está a demorar a abrir por motivos burocráticos. Pela negativa, o fecho definitivo do Asiático, na Rua da Rosa (Bairro Alto) e a saída do Mercado da Ribeira. Mas o Boteco, no Largo Camões, especializado em cozinha brasileira, deverá reabrir em breve. “É evidente que a realidade é outra, temos que nos adaptar e aguentar. Pelo menos, o mercado português está a mostrar dinamismo e isso é bom”, sublinha.

Quem também está satisfeito com a procura dos portugueses é Ljubomir Stanisic, sobretudo por estarem a garantir o funcionamento do seu 100 Maneiras, no Bairro Alto. “Continuamos a ter estrangeiros, mas os portugueses têm aparecido mais. E não alterámos nada, nem menus nem preços. Foi uma boa surpresa”, afirma o chefe. Já no Bistro 100 Maneiras, além da redução do número de lugares para metade, a falta de turistas faz-se mais sentir. “É uma situação muito difícil, mas pretendo seguir em frente”, diz Ljubomir Stanisic.
![Marlene Vieira no Instagram “Mais um dia cheio de Zunzum Já vieram conhecer este espaço #zunzumgast[...]](https://mesamarcadacom.files.wordpress.com/2020/09/marlene-vieira-no-instagram-mais-um-dia-cheio-de-zunzum-jacc81-vieram-conhecer-este-espaccca7o-zunzumgast....jpeg?w=1024)
Por fim, terminamos esta ronda com Marlene Vieira, responsável por um dos acontecimentos gastronómicos do Verão lisboeta, com a abertura em Agosto do Zunzum, gastrobar no novo Terminal de Cruzeiros. “Queríamos começar devagarinho, numa época em que as pessoas estão de férias, mas tivemos logo muita gente, com mais de 70 jantares por noite. Foi uma prova de fogo para a equipa, que esteve parada quatro meses, mas acho que correu muito bem”, alegra-se a chefe, que já está a pensar em alargar os horários, passando a incluir almoços (agora só disponíveis ao fim-de-semana) para responder à procura, constituída essencialmente por clientes portugueses. Menos bem está o espaço no Mercado da Ribeira, mesmo assim a recuperar alguma coisa desde a reabertura, mas ainda a uns 30% relativamente a anos anteriores.
Mesmo ao lado do Zunzum, ela pretende abrir na segunda quinzena de Outubro o Marlene, com cerca de 30 lugares (incluindo balcão), com um “menu-surpresa” único de 12 pratos que custará mais de 100 euros (“é impossível fazer por menos”, garante), onde quer mostrar melhor a sua cozinha. “Vai ser à base de produtos portugueses, com grande atenção à sazonalidade. E não vão ser só umas lascas de não sei quê, os produtos vão mesmo ser protagonistas”. E Marlene Vieira conclui: “Se já antes da pandemia era assim, agora a margem para errar é cada vez menor. Temos que ser fortes e ter restaurantes onde os clientes sintam que há uma cozinha com identidade. Acho que serão esses que vão passar melhor por este período”.
Amanhã publicaremos um artigo de Rafael Tonon relativo aos restaurantes do Porto, depois um outro de Miguel Pires incindido sobre projectos de restauração mais alternativos em Lisboa e, posteriormente, um terceiro sobre outras zonas do país.
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