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Miguel Castro e Silva: “Sinto-me muito bem na minha fase actual”

Chef Miguel Castro Silva

É um nome obrigatório quando se quer saber como a cozinha evoluiu em Portugal nos últimos 30 anos, praticando uma “modernidade” num país e numa cidade, o Porto, onde então ela era frequentemente rejeitada ou mesmo punida. Aos 61 anos de idade, envolvido actualmente em projectos com uma diversidade que vai do Casario, no Porto, ao refeitório da Worten, em Lisboa, passando pelo DeCastro, em Vila Nova de Gaia, ou o Time Out Market, em Lisboa, ou ainda aos pratos congelados do Chefs à Mesa, Miguel Castro e Silva não mostra vontade de parar e é com entusiasmo que fala de todos eles e ainda do DeCastro que em breve vai abrir no Funchal.

Nascido numa família com fortes raízes no Porto – um seu trisavô foi até fundador do Club Portuense -, com um avô britânico e uma mãe alemã (“sou uma espécie de rafeiro europeu”, considera, divertido), foi só aos 31 anos de idade que se definiu profissionalmente como cozinheiro, chocando menos a família e mais a sociedade do Porto, onde essa opção não era lá muito bem vista na altura. Mas, diz Miguel Castro e Silva, a cozinha sempre o acompanhou, sobretudo quando foi estudar Biologia e Oceanografia na Universidade de Kiel, na Alemanha, embora reconheça que nessa altura a música e o trabalho que ia fazendo em vários restaurantes para compor o orçamento lhe interessava muito mais. Nesse período, uma experiência num pequeno restaurante de Munique foi reveladora: “Foi um estágio curto, mas foi lá, tão longe de Portugal, que aprendi a trabalhar peixe, que percebi que ia muito além de cozer, assar ou grelhar”.  A tentação em ser cozinheiro profissional surgiu então, porém, como percebeu que “era uma vida lixada”, tentou outros caminhos.

De volta ao Porto, trabalhou numa empresa do sector têxtil e, quando esta sofreu um revés, achou que era altura de arriscar na cozinha, abrindo o Quinta do Vales, numa pequena quinta da Maia, em 1992. Logo ali, Miguel Castro e Silva quis marcar uma diferença, organizando jantares vínicos com menus degustação, então raros entre nós, com produtores como Dirk Niepoort, Nicolau de Almeida ou Luís Pato. Dois anos depois, mudou-se para a Foz, para o último piso da Fundação Cupertino de Miranda, para abrir o Restaurante do Miguel e, em 1997, para o Bull & Bear, casa onde faria história com uma cozinha inovadora, que só encontrava paralelo com alguns chefes estrangeiros que então trabalhavam sobretudo na zona do Algarve ou, em Lisboa, com nomes como Vítor Sobral, Fausto Airoldi ou Joaquim Figueiredo (já retirado da cozinha, foi, entre outros projectos, o chefe que abriu a Bica do Sapato).

O Bull & Bear iria durar até 2009, altura em que Miguel Castro e Silva mudou para Lisboa, onde abriu o primeiro DeCastro, na Av. Elias Garcia (já encerrado) e se envolveu em vários restaurantes, sendo o Largo (espaço onde hoje está o Belcanto) o mais conhecido. No meio deste trajecto, houve muitas outras colaborações e consultorias (incluindo com as Fundações Serralves e Gulbenkian), livros, presença no Larousse Gastronomique, colaborações com chefes portugueses e estrangeiros (como Olivier Rollinger, por exemplo) e muitas histórias que nos fazem lembrar como era a cozinha há uns anos. Entre elas, fica aqui apenas uma, da dificuldade que teve no início dos anos 2000 para encontrar em Portugal um mínimo de cozinheiros interessados em fazer um curso de cozinha a vácuo. Só conseguiu cinco: Anna Lins, Augusto Gemelli, Fausto Airoldi, José Avillez e Ljubomir Stanisic. Vencedor do Prémio Especial Cutipol Carreira 2021, categoria dos Prémios Mesa Marcada que é votada pelos seus pares, Miguel Castro e Silva é o entrevistado deste Menu de Interrogação, que conta com o patrocínio da cerveja Estrella Damm, no âmbito do seu apoio à gastronomia.

Patrocínio: 

Houve uma grande evolução em Portugal nos últimos anos entre os profissionais de cozinha. Acha que essa evolução foi acompanhada de igual modo pelos empresários do sector, directores de hotéis e outros responsáveis por restaurantes?

Julgo que há essa consciência, o facto de os hotéis apostarem mais e mais em ter restaurantes com chefes de referência é exemplo disso. Também os empresários de restauração, em vez de apostarem em marcas genéricas, estão a estabelecer parcerias com os chefes como forma de criar mais valor, embora continue a haver maus exemplos de falta de respeito pela propriedade intelectual de quem cria os conceitos e os próprios pratos.

 

Bacallhau a 80ºC, uma receita de Miguel Castro e Silva que mereceu estar no Larousse Gastronomique

Em termos de criatividade, em que momento sente que está na sua carreira?

Com mais de 30 anos de carreira, sinto-me muito bem na minha fase actual. Lidero um restaurante fine dining com grande aceitação (Casario), tenho um outro mais virado para a cozinha portuguesa e petisco (deCastro), fiz uma Cantina (sim, tipo refeitório a preços controlados) cujo projecto aceitei pelo desafio de fazer diferente … 
Estou a desenhar projetos para residências sénior e estou a trabalhar num deCastro para a Madeira. E continuo a fazer vinhos, alguns dos quais com elevadas pontuações na especialidade. 
Diria que no inicio era mais tempestuoso, sempre a desafiar novas ideias. Hoje, tenho uma grande base de experiência que vai do mais eclético e gastronómico ao mais tradicional, passando pela produção em fábricas e mesmo a área hospitalar. 
Em resumo, estou com vários projetos em andamento que me dão gosto, trabalho motivado e de forma discreta, que é como sempre gostei. 

 
Nos seus primeiros restaurantes, nos anos 1990, no Porto, sentiu muito o conservadorismo gastronómico dos clientes locais. Hoje, a região tem numerosos restaurantes de cozinha criativa bem-sucedidos. A que se deve essa mudança?

Na altura era mesmo muito complicado. Salvava-me ter clientes “do mundo’”, muitos ligados ao vinho. Acho que, juntamente com colegas como o Fausto Airoldi, ajudei a abrir caminho assim como mudar a mentalidade das pessoas. Por outro lado, Portugal tem hoje maior frequência internacional de público que procura a diferença e viabiliza muitos projetos. 

 

Mais uma receita “histórica”: tártaro de carapau, recorrendo a um peixe então ignorado na alta cozinha


Dá ideia de que a sua cozinha sempre foi mais influenciada pela cozinha francesa clássica e pela Nouvelle Cuisine do que pela vanguarda espanhola ou pela cozinha nórdica. É assim ou pensa que teve outras influências importantes?

Diria que a cozinha clássica francesa é como uma base de boas práticas. É como um instrumento: para se tocar bem tem que se ter a técnica necessária, independente da música que se vai tocar. 
A vanguarda espanhola e nórdica são experimentalistas e justificam-se aonde foram criadas. 
Fui sempre muito aberto à inovação e trouxe para Portugal algumas técnicas de vanguarda, mas sem perder o que sempre foi o meu maior propósito, de redescobrir e valorizar o nosso património, tanto no produto como o receituário. 
Outro exemplo é, no âmbito do trabalho desenvolvido para Ventozelo, ter explorado a vivência da Lisboa quinhentista por encontrar referências no receituário transmontano. 

 
Um dos projectos em que actualmente está mais envolvido é o refeitório da Worten. O que, enquanto cozinheiro, acha mais interessante no trabalho que ali desenvolve? 

Trabalhei muito na indústria e como consultor para cadeias de distribuição e colaborei na área hospitalar assim como em outros projetos de grande volume. 
O desafio na Worten foi fazer uma Cantina como eu acho que deve ser feita, com bastante inovação que normalmente não são aceites por empresas nesta área. Tenho uma cozinha mais compacta, mas tecnologicamente mais eficiente, menos pessoal, mas mais bem formado e bem pago. 
É muito positivo ter uma boa aceitação de um grande número de pessoas que reconhecem a qualidade na sua refeição do dia a dia. Muitas delas não têm condições de aceder a uma restauração mais sofisticada. 


Enumere três ou quatro pratos que considere os mais marcantes da sua carreira.

Claramente o bacalhau 80ºC, como ficou conhecido, que foi publicado no Larousse Gastronomique
Muitos elegem o robalo com laranja e funcho (capa do meu último livro). Mas ao longo de tantos anos há muitos, como o robalo marinado ou o tártaro de carapau que há mais de 20 anos foram desconcertantes. E o cachaço de porco a baixa temperatura que influenciou muita boa gente … 

Ter uma boa cultura geral, acompanhar outros assuntos além dos profissionais, é importante para os chefes de cozinha, sobretudo aqueles que estão à frente dos próprios restaurantes?

Acho que uma boa cultura geral é sempre bom em qualquer situação. Permite-nos ter uma mente mais aberta e clarividente, para além de nos dar instrumentos para melhor criar. Infelizmente, vejo muita desinformação promovida pela facilidade de postar tanta falsidade. 

 
Como avalia a comunicação e a troca de experiências entre os chefes de cozinha portugueses? Pode comparar com a que existe noutros países que conheça?

Tive a minha cozinha sempre aberta a todos os que quiseram enriquecer a sua experiência e ajudei alguns. 
Acho bom ser hoje uma prática mais habitual. É enriquecedor para todos. Eu tive a sorte de viajar pelo mundo enquanto cozinheiro convidado, o que me enriqueceu muito. 

Robalo marinado, outro prato que há 20 anos era “desconcertante” para muita gente

 
Consegue discernir como será o futuro da cozinha em Portugal?

Espero que assente no que temos de nosso e que não se precisa de coibir. Muita coisa enquadra-se no que se chama a Dieta Mediterrânea (veja-se, por exemplo, os milhos ou xerém ou polenta), mas temos a nossa forma própria forma de fazer. Sou mesmo defensor de uma visão mais Atlântica, em linha com o que alguns defendem no norte da Espanha.  
Depois, a abordagem pode ser mais elaborada ou mais acessível, importa é ser bom. 

 
E a pergunta da praxe: qual seria a sua última refeição se soubesse que o mundo acabaria amanhã?

Acho que optaria por um belo peixe grelhado com arroz de grelos (aqueles da Póvoa, amargos e carnudos) .

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